Escrito por Roberto Luiz d’Avila*
Pouco mais de dois séculos nos separam da abertura da primeira escola de Medicina do país, no ano de 1808, em Salvador (BA). Desde então, a medicina brasileira e seus representantes se tornaram referências para a comunidade internacional. Esta projeção resulta também da qualidade do ensino médico oferecido no Brasil, a qual vem sendo ameaçada por políticas públicas que afetam o processo formador e interferem na relação ensino-aprendizagem.
De início, chama atenção a quantidade de novos cursos médicos no Brasil. Em 24 anos, o número passou de 83 para 235 (aumento de 283%). Este quadro nos deixa em segundo lugar no ranking mundial, atrás apenas da Índia, país com população seis vezes maior que a brasileira e 381 escolas. Pontue-se que maior número de escolas não significa, necessariamente, qualidade no ensino oferecido.
No Brasil, apesar de ilhas de excelência, a falta de critérios tem feito com que escolas funcionem com estruturas limitadas, sem laboratórios, hospitais de ensino e professores capacitados (especialistas, mestres e doutores).
Enxertada na Lei 12.871/13, que formatou o programa Mais Médicos, a intenção governamental de oferecer 11.447 novas vagas de graduação em Medicina até 2018 amplifica o sinal de alerta para os defensores do ensino de qualidade e não preocupado com a quantidade.
O governo alega que esse aumento de vagas fixará médicos em áreas de difícil provimento. Trata-se de argumento falacioso. Estudos mostram que apenas 26% dos médicos fixam residência nos municípios de sua graduação. O movimento de permanência ocorre de forma significativa, sim, nos locais onde é feita a especialização.
Sem atentar para tais aspectos essa proposta tem tudo para dar errado, pois os jovens formados continuarão a buscar espaço nas cidades maiores. Apenas a criação de uma carreira pública para os médicos, com oferta de remuneração adequada e condições de trabalho e de atendimento, pode reverter essa tendência, como avisou o Conselho Federal de Medicina (CFM).
Além disso, também causam inquietude as mudanças das diretrizes curriculares aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que passaram a priorizar o internato dos alunos na atenção básica e nos serviços de urgência e emergência da rede pública.
Na prática, isso significa que estudantes poderão ser treinados até em postos de saúde. Essa iniciativa camufla a real intenção do governo: suprir a carência do Sistema Único de Saúde (SUS) com mão de obra barata.
Os mesmos dilemas afetam os programas de residência médica. A oferta de uma vaga de especialização para cada formando (aumento de 12,4 mil vagas em quatro anos), conforme anunciado pelo Ministério da Educação, é inexequível. O problema: não há hospitais preparados e preceptores suficientes.
Assim, o olhar mais agudo percebe que as medidas anunciadas para o ensino médico nada têm de estruturantes. Elas são açodadas e pecam por não enfrentar o debate democrático com segmentos interessados – como universidades e a Comissão Nacional de Residência Médica.
Preocupa-nos, sobretudo, o impacto dessas ações para a sociedade que receberá, no futuro, jovens médicos com formação duvidosa. Cabe ao governo avaliar as consequências desse processo que confirma a vocação de se transformar a saúde – em todos os seus aspectos – em mais um peão do jogo do marketing político e eleitoral.
* É presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).
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