Escrito por Vítor Oliveira*
Todas as afirmações humanas, incluindo todas as afirmações da ciência, são hipotéticas, nunca perdem o caráter de hipótese. Como Descartes pensou, já no século XVII, não temos certeza absoluta de que nossa realidade não seja um sonho, ou seja, o realismo filosófico é também apenas uma hipótese muito útil e, de certa forma, aceita porque é melhor que suas teorias concorrentes mais metafísicas. Essa breve introdução epistemológica é necessária aqui para reflexão ética em nossa área da ciência, a medicina, especialmente em relação ao trabalho médico nas UTIs.
Uma vez que nossas teorias e afirmações científicas são para sempre hipóteses, considerar a possibilidade de erro teórico é parte do trabalho do cientista e do médico. Por mais que tentemos evitá-los, em nossas hipóteses pode sempre haver erros não detectados. Nossas hipóteses diagnósticas, nossas hipóteses prognósticas, nossas hipóteses sobre o melhor tratamento e sobre a melhor conduta a tomar, todas podem conter algum erro despercebido ou não conhecido. Obviamente, consideramos que o médico sempre deve tomar o máximo cuidado para evitar todos os erros já conhecidos, sendo esse seu primeiro dever ético nesse aspecto e o que ele deve aprender na faculdade de medicina e no restante de sua formação e atualização. No entanto, um segundo dever ético tão importante quanto esse é estar permanentemente consciente de que erros não conhecidos ou não percebidos podem estar presentes. E de fato estão, pois, se a ciência e a medicina progridem, é porque os descobrem e os ultrapassam com novas teorias hipotéticas. Somente a consciência de que podem existir erros em nossas ideias, julgamentos, opiniões e teorias faz com que busquemos descobri-los e eles se tornem conhecidos, para que o primeiro dever ético acima, o de evitá-los e corrigi-los, seja cumprido.
O segundo dever ético, de ser consciente de que somos falíveis e podemos estar errados, pois nossas teorias e ideias são falíveis -inclusive nossas teorias e ideias morais- e sujeitas a erros, é comum a todas as profissões intelectuais. Advogados, engenheiros, políticos e cientistas de todas as áreas deveriam cultivá-lo por formação e obrigação. A importância desse dever é clara quando o trabalho envolve trato direto com vidas humanas, como na medicina. Uma das consequências do dever ético de estarmos conscientes da nossa falibilidade é termos que deixar totalmente de lado -efetivamente eliminar- o conceito de autoridade. Em medicina, isso significa que ninguém pode ser autoridade absoluta, isenta de crítica, ou deve se apresentar como tal, seja em relação a diagnósticos, prognósticos, tratamentos e até valores éticos. Quanto mais delicados em termos de alcance e impacto para uma vida humana forem o trabalho e a decisão a ser tomada, mais importante é esse segundo dever e mais ativo ele deve estar na consciência de todos os envolvidos.
A ética estará internada em estado grave na UTI, submetida à má conduta médica, se todos os profissionais que aí trabalham não tiverem plena consciência do dever ético de reconhecer a própria falibilidade intelectual e, com isso, tentar sempre descobrir seus próprios erros teóricos, científicos e éticos, e evitá-los ao máximo, visando ao benefício do paciente. Em suma, a autocrítica intelectual precisa ser instrumento de trabalho do médico.
Não há como negar que, de todas as construções de ideias e julgamentos que fazem parte do trabalho do médico na UTI, à que mais se aplica os dois deveres éticos mencionados acima é a formação do julgamento de que nada mais há a fazer para tratar um paciente, que todos os tratamentos possíveis atualmente à medicina foram realizados com competência e não há como evitar a morte que se aproxima. A melhor descrição para um julgamento como esse, no entanto, não é de que o paciente está em condição em que a morte é inevitável, mas, sim, de que a medicina, no seu nível atual de conhecimentos, não tem mais possibilidades de tratá-lo e de evitar sua morte. De fato, a história do progresso da ciência médica mostra que incurabilidade não é propriedade da doença ou do paciente, mas do estado atual da técnica, ou seja, não é o paciente que está com doença definitivamente incurável ou terminal, é a medicina que não tem, ainda, condições de curá-lo.
O julgamento de inevitabilidade técnica da morte é dos mais delicados dentre os que podem ser feitos numa UTI, pois é opinião de alto impacto sobre uma vida humana, sobre uma pessoa que tem toda uma longa e valiosa história de vida, que tem sonhos e desejos, que ama outras pessoas e que tem familiares e amigos que também a amam. Trata-se da vida de uma pessoa que, é imperativo admitir, se ela mesma não expressou claramente o contrário, deseja continuar vivendo e conta com nossa atuação profissional para isso. É por ser assim, tão delicado e de universal impacto ético e moral, que tal julgamento de inevitabilidade técnica da morte e também seu correspondente anterior necessário em uma UTI, o de inevitabilidade técnica da piora clínica do paciente, devem ser submetidos ao mais amplo e crítico escrutínio, em busca de erros, antes de serem minimamente aceitos. Na verdade, como toda tese ou opinião, tais julgamentos devem estar sempre sob suspeita intelectual, pois só quando colocamos nossas ideias sob suspeita nos interessamos por descobrir erros nelas. Não haverá nada mais valioso para essa vida humana internada na UTI e para seus familiares que descobrirmos erros em nosso julgamento de que não seria mais possível tratá-la e tentar salvar sua vida.
A aplicação sistemática dessa ética fundamental na medicina, e em quase todas as atividades intelectuais, pode esbarrar em uma má tradição derivada do mito da autoridade do cientista. A necessidade de preservação da autoridade leva à aversão à descoberta de erros intelectuais e, consequentemente, à ocultação desses erros, às vezes com apoio de pares e de pessoas do entorno autoritário. E, em atividades práticas, a não consideração de erros em sua fase intelectual leva diretamente a erros factuais. Na medicina, nas UTIs, nos julgamentos de inevitabilidade técnica da morte de pacientes, tal processo pode gerar erros factuais graves, inclusive mortes que não deveriam ocorrer se tais erros intelectuais fossem descobertos e corrigidos antes.
O próprio Código de Ética Médica atualmente vigente no Brasil, em seu artigo 41, diz: “É vedado ao médico… Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.” É sobre esse julgamento de “doença incurável e terminal”, de que fala o código, que os princípios éticos aqui discutidos devem ser aplicados. As perguntas a serem feitas constantemente nas UTIs, quando se cogita em realizar um julgamento de terminalidade, são (não há mal algum em fazê-las, exceto colocar o mito de nossa autoridade intelectual em perigo): Será que não há erro na nossa opinião de inevitabilidade técnica da piora ou morte do paciente? Será que pensamos em tudo e fizemos tudo que a medicina atual possibilita para reverter o quadro, e com a competência necessária? Somente depois dessas perguntas serem feitas e refeitas muitas vezes, de preferência por muitas pessoas diferentes e independentes e de elevado espírito crítico, é que se tem legitimidade ética para aceitar, como hipótese mais forte, um prognóstico de piora inevitável ou de terminalidade. E não basta fazer tais perguntas uma única vez, em um pequeno grupo de médicos ou multidisciplinar, grupos em que muitas vezes a opinião crítica é desencorajada. O questionamento tem que estar permanentemente presente, a hipótese de condição clínica irreversível tem que ser tratada sempre de forma crítica e com disposição para abandoná-la, caso a busca resulte em descoberta de erros. O código de ética ainda afirma que, mesmo que aceitemos o julgamento de terminalidade, a decisão sobre a moderação ou não de atos diagnósticos e terapêuticos para prolongar a vida do paciente, mesmo os mais persistentes, compete só ao próprio paciente, ou, na impossibilidade de ele se manifestar, ao seu representante legal. Nem o médico, nem juntas médicas, nem equipes multidisciplinares têm respaldo ético ou legal para moderar esforços médicos sem a anuência do paciente; e em nenhuma hipótese, nem a pedido deste, admitem-se medidas -ações ou omissões- para abreviar a vida. Os cidadãos e a sociedade, que são a razão de ser de nosso trabalho, não esperam que uma UTI seja espaço de gerenciamento de vidas e mortes, mas, sim, que cumpra seu original papel de aplicar toda a ciência médica conhecida em prol da melhora da saúde do indivíduo que está nela internado.
O quanto esses simples, mas fundamentais princípios éticos são aplicados nas muitas UTIs que existem no Brasil deve ser objeto de reflexão individual, institucional e de toda a sociedade. A profissão médica, como todas as outras, é formada por pessoas com variadas histórias de discussão sobre valores. E valores têm ainda a propriedade de serem facilmente transmitidos e recebidos passivamente; se são bons, ótimo; se não são, condutas eticamente questionáveis espalham-se e podem se instalar como cultura, sustentadas por argumentos falsos e superficiais. Em medicina, tais argumentos falsos podem ir desde os conceitos autoritários de que assunto médico só é compreendido por médico e de que não cabe aceitar questionamentos e dar satisfação constante a pacientes e familiares sobre a qualidade do serviço médico, até justificativas preconceituosas sobre características e situações individuais do paciente, como, por exemplo, a equivalência entre idade avançada e terminalidade. Além disso, em muitos meios intelectuais, a ideia ética básica de que sempre podemos estar errados em nossos julgamentos não é ainda tão conhecida e cultivada como deveria. Diplomas e certificados de especialização aumentam a segurança dos pacientes, mas não são garantia de aplicação de bons princípios na prática profissional, pois estes só vingam se construídos e debatidos ativamente. Se o princípio da falibilidade de nossas opiniões e julgamentos, principalmente em relação a diagnósticos de terminalidade e prognósticos de piora ou óbito inevitáveis, não é permanentemente lembrado na UTI, pode haver erros éticos graves e danos irreversíveis a pacientes, familiares e à sociedade. Se é lembrado, ainda assim precisamos ser sempre críticos e vigilantes, para não incorrermos nesses erros.
* É médico graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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