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Fernando Queiroz Monte*

 

As discussões sobre a educação médica se limitam ao ensino médico e de forma restrita ao aspecto cognitivo. Tal opção situa a análise no campo do conservadorismo de ideias. Sabemos que o mundo passa por um período de ampla dominância do conservadorismo comparável a dos anos 1930. O ideal do ensino médico conservador limita o campo para escola com elevado nível tecnológico, com número restrito de formandos e rigor de avaliação para saber se o discente assimilou bem as formalidades transmitidas.
  

A ideologia médica atual expressa: “Uma boa medicina não poderá ser exercida sem o auxílio de equipamentos da última geração”. Isso condena pequenas localidades e subúrbios mais afastados a serem considerados como assistidos por má medicina, mesmo exibindo baixo nível de mortalidade infantil e expectativa de vida acima da média.

O que os conservadores anseiam que os futuros médicos aprendam? Todo o contexto ditado pelo complexo médico industrial.

Desde 1970, Bárbara Ehrenreich cunhou a expressão “complexo médico industrial”.  O conceito passou a ser concebido de modo ampliado, contemplando as diferentes articulações entre a assistência médica, as redes de formação profissional, a indústria farmacêutica e a indústria produtora de equipamentos médicos e de instrumentos de diagnóstico.  Levando em conta esse contexto, Ivan Illich (1926-2002), no início dos anos 1970, escreveu uma dura crítica da Medicina, sobretudo pela medicalização acentuada, que trazia a iatrogenia social e também questionava as interpretações sobre o normal e o controle social dos setores dominantes usando o médico. 

No jornal do CFM, analisando os orçamentos da saúde e culpando o Estado pela crise da saúde, chama atenção o que houve no período criticado, entre 2003-2014; uma olhada fria e não muito detida nos números do orçamento permite ver que, nesse período, os recursos orçamentários para a saúde foram quadruplicados, embora tenha somente pouco mais que triplicado o que realmente chegou a ela. Deve-se levar em conta que a população, no período, cresceu em torno de 12%. Incontestavelmente a assistência médica no período piorou, e culpar somente o governo, sem analisar outros fatores da prática médica, pode soar como corporativo ou leviano.

Para que eu não seja acusado de injusto ou delirante, peço que se apanhe uma revista médica e verifique se ela não está recheada de propaganda de medicamentos e de instrumentos médicos. Na matéria científica, pode ser percebida a influência dos patrocinadores. Os congressos foram transformados inicialmente em mercados, e, logo, passaram à feira com a distribuição de brindes e sorteios de prêmios pelos laboratórios farmacêuticos e exibição de vídeos mostrando a tecnologia dos novos instrumentos médicos. Classificando os médicos em três classes, Jayme Landmann (1920-2006) definiu a Classe A como “os grandes aliados do sistema e os baluartes do complexo médico industrial, que nele se apoia. […] os médicos da classe A passaram a dominar as escolas médicas, os ensinos de graduação e pós-graduação, as sociedades científicas e especializadas”.  Escrito há mais de trinta anos, esse estado cristalizou. As “lideranças” médicas cada vez mais recebem recursos para as suas revistas e sociedades médicas e são mimoseados com passagens aéreas para participarem de congressos e usufruírem justas férias.

Líderes de opinião renomada intervêm em favor (dos laboratórios) nos congressos e nas mídias especializadas. Campanhas na imprensa expõem os problemas de saúde visados por medicamento lançado, o que impulsiona os pacientes acometidos a pedir a sua prescrição etc. Mas, o dado em desfavor dos medicamentos e as ordens de ficar em guarda são pouco audíveis, afogadas no fluxo da promoção. 

Quando concluí o curso de medicina, a taxa de normalidade da colesterolemia era de 150-300 mg/dL e da glicemia, de 80-120 mg/dL. Esses valores foram obtidos através da prática clínica de seis a sete dezenas de anos e comprovados por pesquisas sérias e rigorosas. Hoje os valores foram decrescendo e puxados por novos medicamentos que são lançados e que precisam de mercado: cada redução de 10% no limite superior de normalidade corresponde a milhões ou mesmo bilhões de novos “consumidores”. Classificamos os usuários de medicamentos em três grupos:

 

                                 

No grupo 1, estão pessoas com colesterol acima de 300 mg/dL e glicemia acima de 120 mg/dL; no grupo 2 estão pessoas com colesterol entre 300 e 200 mg/dL e glicemia entre 120 e 100 mg/dL; e o grupo 3, abaixo daqueles valores mínimos. Considero o grupo 1 constituído por pacientes, por se beneficiarem com o tratamento; o 2, de consumidores de medicamentos, sem benefícios, mas com riscos; e o 3, consumidores ou até vítimas, pois há forte possibilidade de malefícios. Existem as interseções: a composta por 1 e 2, na qual se encontram pacientes sem benefícios e consumidores que podem se beneficiar com o medicamento; e a interseção de 2 e 3, em que o medicamento é desnecessário sem causar malefício. Os pacientes, ao se tornarem consumidores, são compulsivamente poluídos com medicamentos.

Há repercussão na grande imprensa do que beneficia a indústria farmacêutica, por exemplo, a capa da revista da elite brasileira Veja em 16 de junho de 2004 tinha o título “Um santo remédio?”, colocando as estatinas como benéficas para diversas doenças, além da redução do colesterol; o jornal O Globo, em 29 de julho de 2013, no Caderno Saúde, com o título “Polêmica sobre o uso excessivo de estatinas”, disse que a Sociedade Brasileira de Cardiologia aumentou o controle do colesterol a partir deste sábado, decretando que não seria tolerado LDL acima de 70 mg/100 ml. Pode ser lembrado que as estatinas não são drogas tão inocentes: no período em que a cerivastatina foi lançada, foram diagnosticados casos de rabdomiólise com liquefação dos músculos e insuficiência renal aguda; quando da sua retirada do mercado, foram notificados oitenta óbitos. O FDA avaliou 3.339 casos de rabdomiólise em usuários de estatinas entre 1990 e 2002.  

O conservador se sente ameaçado por qualquer crítica, mesmo a mais amigável. Nos anos 1980 apareceu, com origem no Canadá, a epidemiologia clínica que ensinava aos médicos como analisar criticamente os dados clínicos, sobretudo aplicada à leitura de artigos científicos. Logo foi jogada de lado pelo aparecimento da “medicina baseada em evidência” (MBE). A crítica na MBE passa longe, por isso atribuo como seu ancestral o que se fazia na antiguidade. Na Babilônia, segundo relato de Heródoto (484-425 a.C.), por não existir médicos na região, o doente ia para as praças interpelar os transeuntes se haviam tido antes ou conheceram alguém com os sintomas que ele apresentava, e, caso positivo, o que fizeram e o que se sucedeu.  A procura simplesmente de casos não estimula a crítica, e sim a busca.  

Embora examinando sumariamente o assunto, mostro alguns dos males inerentes da educação médica baseada na imposição cognitiva, castrada de qualquer espírito crítico. Exponho o que a experiência de mais de cinquenta anos de profissional médico me ensinou.

 

*É 1º secretário do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec).

 
    

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