Escrito por Katia Marisa Fróes*
Era uma vez um reino que tinha um nome diferente: Saúde Mental. Seus moradores chamados loucos viviam ali na busca de sanidade, vista como necessária para o convívio de todos. Seus governantes, considerados normais; viviam ali tentando acolher, dar guarida, alívio, chamado de tratamento; à loucura dos súditos. Acreditavam que isso era possível e realmente era. E isso os mantinha unidos, apesar das diferenças. O reino, como todo reino, em muitos momentos tinha problemas, dificuldades, períodos de crise e em outros, prosperava e tinha sua fé no que fazia renovada. Às vezes, governantes tinham sua loucura aflorada e súditos sãos mostravam o caminho. De um jeito ou de outro, havia um certo equilíbrio nessa equação.
Até que um dia, vindo de outras terras, trazendo motivações outras, um novo governante assume o reino. Em sua loucura, não admitida, muito menos acolhida, por isso mesmo devastadora, ele decreta que aquele reino dali para diante não haveria mais de existir como tal. Define seus governantes como incapazes, ignorando tudo que havia sido construído até então e decreta: A partir de agora todos nesse reino, súditos e governantes viverão um período “adormecido” em seus propósitos, crenças, cidadania, motivações, lutas, ideais, assistência, por que eu assim o quero.
Infelizmente, o país onde reino se localizava permitia isso. Os moradores de todos os reinos desse país eram sujeitos a verem serviços essenciais a sua saúde e educação, construídos a custa dos esforços de muitos, por longo tempo de dedicação, virarem nada, da noite para o dia, por capricho de alguns poucos, interesses ou desinteresses políticos de outros e dizem, ainda não consegui entender como, que isso era resultado das “escolhas” de seus moradores, que acreditavam terem livre arbítrio para escolherem os seus governantes e o faziam errado, pagando o preço. Mas, como alguém pode ter livre arbítrio sem saúde, sem educação, ou mesmo sem cidadania e, no caso do reino em questão, sem serem sujeitos de si mesmos? Então, às vezes, por vários reinos desse país nada encantado, vários governantes decretavam coisas parecidas o tempo todo e o país mergulhava nesse “sono” de pobreza, miséria, ignorância, violência, desesperança, desassistência, como de certa forma vemos agora a Saúde Mental desse país mergulhada.
O reino então passou alguns anos adormecido em seu sono punitivo, mas o governante louco, talvez por não ter sua loucura cuidada, acabou sendo excluído também, como acontece com a loucura de forma geral, que não é cuidada, mas é excluída, como aconteceu com os súditos do reino, que voltaram ao período das internações hospitalares como “tratamento”, situações de risco, abusos, exclusão social. Talvez ele nem se dê conta disso, do retrocesso trazido por ele, isso também faz parte da loucura, quando ela é na verdade nossa sombra projetada para fora. Podemos ver isso na nossa história ao longo dos séculos.
Mas isso não significou exatamente que o reino acordaria. Para despertar o reino desse sono, um príncipe encantado teria que vir. Ele nasceria da elaboração da nossa própria loucura, da dor, das feridas lambidas e curadas, da reconstrução da fé, dos ideais, que são os grandes motivadores, da aceitação de que avançamos como as ondas do mar na areia e como elas, também retrocedemos, para avançarmos novamente, um pouco de cada vez. Esse príncipe, com o seu beijo encantado, amoroso, seria capaz de trazer esperança para esse reino, para esse país. Ele não chegaria num grande cavalo, com as suas roupas reluzentes e sim no coração de cada um, silencioso, forte, corajoso, acordando as ideias, o desejo pelo bem maior, pelo bem de todos e adormecendo os egos adoecidos pelo egoísmo, pela vaidade, pelo poder, sem excluí-los, pois eles fazem parte de nós e necessitam estar integrados ao todo, mas não são o todo.
O príncipe, o louco, o governante, o súdito somos nós. E a história de nosso reino, nosso país pode ser mudada, se aproximando mais de um final feliz para todos, em vez de uma maioria num sono de exclusão e uma minoria em um sono egóico destruidor.
* É médica psiquiatra.
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