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Escrito por Geraldo Guedes.*


As eleições presidenciais americanas podem ajudar a clarear uma questão que, para nós brasileiros, ainda permanece, extemporaneamente, no remanso das águas turvas.

Aqui no Brasil, na área da saúde, não conseguimos distinguir nitidamente quem é conservador e quem é progressista. Freqüentemente, fala-se uma coisa e pratica-se outra. Nos Estados Unidos, a era Bush fez, pelo menos, o favor de assinalar uma linha divisória entre os dois lados, com exemplos insofismáveis do que é bom e ruim para a saúde pública, tanto aqui como lá.

Lá, os mesmos que defendem a ocupação militar do Iraque também querem que a saúde continue privatizada. Assim são os republicanos de Bush. No pólo oposto estão os democratas, que prometem, além da retirada do Iraque, a adoção de um programa de assistência médica e hospitalar para os 50 milhões de americanos desprovidos de planos de saúde. Estamos falando de 17% da população dos Estados Unidos, estimada em 300 milhões de habitantes. Calcula-se que 23 milhões de assalariados dos Estados Unidos – portanto, estamos aí falando de pessoas formalmente empregadas, na potência econômica do planeta – não disponham da cobertura de planos de saúde. Estão ao léu, lançados a um mar de incertezas. Muito parecido com aqui.

O sujeito não pode ficar doente, porque o sistema só fornece proteção, mesmo assim precariamente, a cerca de 90 milhões de cidadãos, um contingente equivalente a 30% da população. Os beneficiários dos programas públicos são os inválidos, os miseráveis e as pessoas com mais de 65 anos.

O sistema não paga medicamentos para os idosos, o que gera situações ridículas, um vexame para uma sociedade que responde por 25% da produção econômica mundial. Por exemplo: os idosos das regiões próximas ao Canadá atravessam a fronteira para comprar medicamentos a preços 30% ou 40% inferiores, muitas vezes em excursões patrocinadas pelos governos de seus estados, que se vêem na contingência de ajudá-los. É oportuno sublinhar que o Canadá é, ao lado de alguns países europeus, referência internacional na assistência à saúde, com a totalidade de sua população atendida pelo sistema estatal. O panorama americano é tão dramático que o assunto health care (assistência à saúde) forma, com a guerra no Iraque e a recessão econômica, o tripé de debate na pré-campanha eleitoral. Hillary Clinton e Barack Obama prometem adotar programas emergenciais de assistência à saúde que custariam entre US$ 65 bilhões e US$ 100 bilhões.

Não é por acaso que o documentarista Michael Moore lança agora seu terceiro filme, denominado Sicko – $O$ Saúde, sobre os trágicos resultados da privatização da saúde nos Estados Unidos. Ele é especialista em temas chocantes. Os documentários anteriores foram Tiros em Columbine (sobre a paranóia americana do culto às armas e das ameaças que vêm de todos os lugares), e Fahrenheit – 11 de setembro.

Ao fazer a resenha do filme Sicko – $O$ Saúde, em “O Estado de S. Paulo”, o jornalista Luiz Carlos Merten escreve que “mesmo na Inglaterra de Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, uma das artífices das economias neoliberais, o sistema socializado de saúde permaneceu intocado – e até hoje o paciente, além de atendimento, recebe na saída do hospital o dinheiro da condução para casa. A pergunta de Michael Moore é simples – quem ganha com a privatização da saúde nos Estados Unidos?”. E o jornalista do Estadão observa, ainda, que “Sicko busca casos na Europa e no Canadá para mostrar as vantagens da socialização”.

Pois, se o cenário da assistência à saúde, nos Estados Unidos, é rigorosamente dantesco, como nos piores labirintos da Divina Comédia, em que pé estamos nós, neste Brasil lindo e trigueiro?

Em termos de atendimento à população em geral estamos muito bem, comparativamente aos irmãos do Norte. E temos todas as condições de melhorarmos ainda mais. Apesar da má qualidade do ensino de medicina em muitas escolas privadas, e das precárias relações de trabalho dos médicos que atendem aos sistemas públicos de saúde, temos, sim, um exemplo muito positivo a ser mostrado aos brasileiros e ao mundo.

Trata-se do SUS, que atende a todos os que lhe batem às portas, em quaisquer circunstâncias, sejam indigentes, assalariados e detentores de planos de saúde, não importa. Atende, sim, em todos os procedimentos, desde a vacinação, a hemodiálise, as cirurgias cardíacas, os transplantes e as intervenções do mais alto nível de complexidade.

Esse mesmo SUS, que é responsável pela redução significativa da mortalidade infantil e pelo aumento da expectativa de vida dos brasileiros, não consegue dar resposta às filas nos hospitais e nos centros de especialidades da rede pública e coloca a grande maioria da população brasileira diante de uma tragédia anunciada.

É necessário ultrapassar o sub-financiamento do setor saúde com a imediata regulamentação da Emenda Constitucional 29, adormecida desde janeiro de 2003 no Congresso Nacional, e superar os graves problemas na gestão pública que joga dinheiro no ralo e reduz a eficácia do sistema.

Mas, em vez de melhorarmos o SUS estatal, conforme o bom exemplo que é dado pelo Canadá – e que foi demonstrado até mesmo pela Inglaterra da Senhora Thatcher – há uma proposta de se privatizar parte da gestão do SUS, com o projeto de criação de fundações “públicas” de direito privado, em tramitação no Congresso Nacional por iniciativa do Executivo. Será que há algum integrante do Republican Party infiltrado no governo Lula?

É tão difícil acreditar nisso quanto na possibilidade de o Brasil enviar tropas ao Iraque.


* É conselheiro federal pelo estado de Minas Gerais e coordenador da Comissão Pró-SUS.


* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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