Escrito por Isaias Raw*
As recentes propostas de reforma curricular de faculdades de medicina tradicionais e particularmente de dezenas de novas escolas médicas que o Ministério da Saúde pretende promover, me preocupam por ameaçar a qualidade do ensino médico no País, onde o estudante deve estar preparado para, sem voltar aos bancos da escola, a aprender a aprender, mantendo-se atualizado sem o “auxilio” do promotor das empresas farmacêuticas. É inacreditável que poucos conheçam a essência do relatório Flexner (1908) que deu origem inovação do ensino médico, recomendando: redução do número de escolas médicas que tinham formavam médicos mal treinados de 155, para 31; que as escolas médicas particulares fossem fechadas ou incorporadas às universidades existentes; aumento dos pré-requisitos para o ingresso em escolas médicas; restrição a aulas redundantes dos professores que julgam os alunos por provas onde devem devolver para cada professor o que ele apresentou em suas aulas; treinar os médicos para exercer a pratica médica baseada em evidências científicas e exigir que as faculdades de medicina fação pesquisa; dar as faculdades de medicina o controle dos ensinos clínicos em hospitais a ela ligadas; tornar mais rigoroso a regulamentação da licença do exercício da medicina. Este relatório, que deu origem ao Council of Medical Education, foi a base para que em 1917 a Fundação Rockfeller escolhesse investir na FM.USP, mandando um missão de alto nível, financiando a construção do prédio das ciências básicas e contratando no exterior um seleto número de professores. Como contrapartida exigiu que o corpo docente das cadeiras básicas de tempo integral se dedicassem a investigação e que fosse construído um Hospital de ensino e pesquisas clinicas, o que deu origem ao Hospital e Clinicas. Com o passar dos anos e como ocorreu com escolas norte-americanas de medicina, expandiram o seu Hospital Central criando Hospitais especializados controlados por professores de clinicas, onde o ensino básico-clínico foi perdendo a prioridade.
A Universidade de São Paulo começou a ser construída em área da reserva da Mata Atlântica do Instituto Butantan. A FM, a Escola Politécnica e a Fac. Direito jamais incorporaram de fato à USP. Walter Leser (que como eu, havia sido assistente do Depto de Bioquimica da FM.USP) fomos escolhidos para o Conselho que criou o Curso de Medicina da UNB, que desistimos quando a construção do Hospital de Ensino foi substituída pelo uso de um hospital isolado que não atendia as recomendações de Flexner. Quando o Prof. Ulhoa Cintra se tornou Reitor da USP aceitou minha proposta de planejar o Curso Experimental de Medicina, onde seriam feitas inovações profundas do currículo que incluíam desde o primeiro dia a integração entre o ensino das disciplinas básicas com a introdução ao ensino clinico e a proposta de construção no campus da USP de um hospital de ensino aberto à população de uma área definida da cidade, permitindo aos estudantes ter contato com pacientes portadores de doenças frequentes e pela absorção de um centro de saúde existente na Av. Vital Brazil, onde os alunos teriam contato com pacientes que não precisavam de internação. No primeiro ano, este curso foi improvisado, atraindo imediatamente 80 alunos que estavam, por exames extensos que incluiu até provas de laboratório, no topo da lista de admissões do Cescem (Fundação Carlos Chagas, que foram fundados pelo Leser e eu). Para o Experimental foram escolhidos jovens docentes com uma evidente dedicação à pesquisa e interesse pelo ensino médico (como os Profs. Alipio Correia e LC Junqueira). Os outros catedráticos da FM permaneceram no curso tradicional ficaram chocados pelo rápido prestigio do Experimental e amparados pelo regime militar extinguiram esta “subversão”.
Eu já havia conquistado a cátedra de Bioquímica e a USP terminado a construção do Instituto de Química na Cidade Universitária. Cintra apoiou a minha proposta de transferência do Departamento de Bioquímica da FM.USP para o Instituto de Química, atraindo os deptos de bioquímica da FFCL, Farmácia, Odontologia e Politécnica criando a maior massa critica de pesquisa em bioquímica e biologia molecular do País e iniciando a real integração da USP.
Eu que tinha sido o mais jovem professor catedrático da FM, fui “ contemplado” com uma aposentadoria compulsória e migrei para o MIT em Boston, onde havia surgido a ideia da inovação de currículos de escolas medicas pela integração básico-clinica. Para que isto fosse possível era indispensável reescrever livros textos com conteúdo integrado. Horovitz diretor da Organização Pan-americana de Saúde me ofereceu um auxilio de 5.000 dólares e iniciei o preparo de um modulo modelo Anemia, from molecules to Medicine, que conclui na Harvard School of Public Health e foi publicado pela prestigiosa Little Brown.
Nos Estados Unidos o College precede a formação profissional. A New York City University por onde passaram até os anos 60 o maior número de prêmios Nobel, decidiu inovar o ensino médico focalizando na produção do médico de família que ofereceria a atenção médica básica. Os estudantes foram selecionados por se comprometerem a ser os clínicos gerais nas cidades, atendendo a população com menor recursos e educação, incluindo imigrantes e seus descendentes. O curso deu preferencia a estas minorias, que entravam para um College sem jamais ter aprendido a aprender, usando livros e não anotações de aulas formais. Fui por ela convidada a ser um docente. Teriam os cursos básicos de química, física e biologia, ensinados por docentes não médicos que repetiram o que ensinavam para os alunos que não se destinavam a ser médicos. No fim de quatro anos caberia a cada Escola Medica fazer um exame de aceitação, baseado no exame nacional de seleção para escolas medicas mantendo as mesma exigências, o que conflitava com o curso oferecido pelo City College. O curso foi sendo estendido de quatro até sete anos, sem sucesso. Os poucos que foram aceitos pelas Escolas Medicas prefiram as especialidades mais bem remuneradas. Desisti achando que poderia um dia produz módulos para escolas médicas que iriam surgir, algumas que foram procurar no exterior modelos que separavam o curso “college” do curso médico, e livros baseados nos textos tradicionais dos anos 40 (anatomia pré-tomografia ocupando um quarto do curso médico, fisiologia compilada por Best e Taylor, farmacologia por Goodman e Guilman e seus descendentes, retratados num na anuncio promocional da Amer.Med. Assoc descrevendo o que é um médico: uma imensa pilha de livros com um estetoscópio que não conseguiriam ser lidos em alguns anos e não motivariam os estudantes que queriam ser médicos.
A simples noção de que para inovar o ensino da medicina, não basta trocar o quadro negro por um data show e repetir todos os anos o mesmo conteúdo. É fundamental que o aluno aprenda de forma integrada a relação entre os avanços das ciências biomédicas com a pratica da medicina, exigindo novos textos que só podem se preparados pela interação de pesquisadores de áreas diferentes, com clínicos de especialidade distinta que precisam selecionar o que é fundamental para poder entender e avaliar artigos originais de revistas biomédicas, acompanhando o acelerado avanço da ciências médicas e sem se confundir com a propaganda que tenta preencher o pouco tempo que o profissional tem para se informar, avaliando o impacto de novas descobertas para a pratica médica. Jamais esqueci a presença constante de estudantes de medicina na biblioteca da FMUSP que lendo as revistas mais importantes, testavam na sala de aula quanto o professor acompanha. Para isto os livros não podem mais ser impressos, ou distribuídos como “apostilhas” (que encontrei na Fac. Medicina da Harvard!) mas disponíveis na internet e passiveis de atualização frequente. Preparar estes módulos para aprender é um repto para agregar equipes a preparar estes materiais, livre de direitos para o acesso de alunos de faculdades de medicina que se dispõem a inovar continuadamente para formar profissionais atualizados.
* É professor catedrático aposentado de Bioquímica na FMUSP, fundador do Curso Experimental de Medicina, da Fundação Carlos Chagas, da EDUPS e da FUNBEC. Foi professor visitante do MIT, Harvard School of Public Health, Center of Biomedical Education CUNY. Foi director do Instiuto Butantan (1991-97) e Presidente da Fundação Butantan (1998-2009).
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