Escrito por José Hiran da Silva Gallo*
Neste 18 de outubro, Dia do Médico, mais uma vez não há motivo para festa no seio dessa classe carcomida pelo câncer da acomodação, da aceitação pura e simples da ação deletéria dos acontecimentos que ao longo dos anos vêm rebaixando os ditos – por vezes malditos – discípulos de Hipócrates. Desde logo, quero deixar claro que não é com prazer que redijo estas considerações acerca de pessoas que, como eu, escolheram a medicina como profissão. Longe de mim atitudes autofágicas. Preferiria, isto sim, estar aqui a alardear expressões ufanistas como bem cabe num dia como este em que se quer homenagear a classe. Mas, sinceramente, não tenho como fazê-lo.
Meus próprios colegas têm a certeza de que seria tendencioso e comprometedor de minha parte se aqui dissesse que está tudo bem. O que é lamentável de tudo isso que está acontecendo cronicamente de ruim com o médico brasileiro – certamente com o de outros países com o perfil do nosso também – é que a culpa é da própria classe.
O estágio letárgico que a imobiliza acuada, à mercê dos fatores que a fragilizam, já lhe causaram muitos danos materiais e morais. Faço uma ressalva, por ser justo, a um punhado de colegas que tentam manter vivas algumas entidades médicas, mas que não encontram proporcional ressonância entre a maioria de seus colegas, que preferem se alijar do processo.
Uma citação de Theodore Roosevelt bem ilustra essa conduta: “É melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias, mesmo se expondo a derrota, do que formar filas com os pobres de espírito que nem gozam muito, nem sofrem muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem derrota”. A perda da esperança pode ser fatal aos projetos humanos . É o que denota está acorrendo – sei que é duro dizer isto! – com nossa classe.
Pensar que isso está acontecendo com uma com profissionais que precisam, mais que todas as outros, ser exemplo de esperança, é preocupante. Não só para os seus pares, como também para toda a sociedade que deles depende nos momentos mais difíceis, quando a saúde e a vida estão ameaçadas.
A classe médica precisa ser portadora dos melhores exemplos. Não é possível ser um bom médico sem ser um bom cidadão. E um bom cidadão não pode abdicar de seus legítimos direitos cidadãos, como condições adequadas e seguras de trabalho e honorários justos. Na medida em que o médico se submete a imposições leoninas de outrem por motivos que divergem dos éticos propósitos que norteiam a prática correta da medicina, ele está sendo conivente, está prevaricando.
Pior ainda se alegar que assim age por necessidade de sobrevivência profissional. O médico, hoje – que ninguém se engane! –, é refém de interesses que não são os seus e tampouco dos pacientes que trata. Há uma orquestrada dominação multifacetada que sufoca a ação médica. Há muita gente levando vantagem em cima do trabalho médico. Há muito lobo fantasiado de cordeiro!
O lucro pecuniário é um direito de quem trabalha; no caso do médico não deve sobrepujar os valores essenciais de proteção à vida, mas também não deve ser vis. Qualquer médico que aja à revelia desses propósitos não está agindo como verdadeiro médico. É um vendilhão de serviços médicos, não um médico.
Tristemente, a imagem sacerdotal do médico, tal como uma foto antiga, está empalidecida pelo do tempo. Isto conspira contra o que de mais importante precisa despertar a figura médica: confiança. Por mais saber científico que o médico domine, nunca será o profissional que o paciente deseja se não lhe for confiável. E não pode ser confiável alguém que aceita condições de trabalho adversas, que põem em risco a integridade e a vida que o paciente lhe confiou.
Sei que é difícil assumir a atitude preconizada pelo Código de Ética Médica. Individualmente, claro que é difícil; mas se a classe médica se unisse e usasse os dispositivos legais que hoje dispõe certamente que a história seria outra. Poderia levar tempo, mas acabaria sendo outra.
A acomodação, a condescendência, entretanto, deu asas ao monstro. Enfrentá-lo com a força que lhe demos põe em risco muitos interesses inconfessáveis. Por outro lado, não seria justo se não tratasse aqui da parcela de culpa da sociedade. Colocar a culpa no médico de tudo que não sai a contento com o paciente, acusá-lo de mercantilismo, de incompetência, de desumanidade são atitudes engatilhadas e apontadas constante e impiedosamente para esse profissional.
É claro que o médico, como todo ser humano, também erra. É compreensível a reação emocional, particular e coletiva, diante de uma falha (ou suposta falha) desses profissionais. Afinal, o erro médico pode provocar danos diversos, alguns muito graves, e até a morte de seus semelhantes. Não há o que questionar quanto ao fato de necessitarem de competente apuração e justa punição dos culpados. O que não se pode aceitar são prejulgamentos, acusações levianas eivadas tão-somente de emoção de quem quer, a todo custo, punir alguém pelo sofrimento e/ou pela morte de pessoa de sua afeição.
Distinguir um erro médico de um mal resultado, um infortúnio é vital para se julgar com isenção esses impasses. O primeiro decorre de imperícia, negligência ou imprudência do profissional; o segundo, resultam de condições que não dependem do médico. Que mais este Dia do Médico sirva pelo menos para lembrar ser urgente que médicos e comunidade reflitam sobre a situação e a atuação desses profissionais.
Da parte deles, entre os quais me incluo, que ações individuais e coletivas sejam tomadas para que se resgate a imagem de confiabilidade que precisamos para tornarmos mais eficazes os nossos atos profissionais. Da parte da comunidade, que nos julguem com isenção e nos propiciem condições adequadas para que possamos atuar com maior tranqüilidade e segurança. Todos ganharão com isto.
*José Hiran da Silva Gallo é diretor-tesoureiro do Conselho Federal de Medicina (CFM).
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