Planos de saúde ofereceram uma melhor remuneração, denominada «consulta bonificada» a médicos que pedissem menos exames a seus pacientes. A Associação Médica Brasileira denunciou a prática como antiética e a Agência Nacional de Saúde proibiu sua utilização. Em tempo.
Se um médico pede um exame é porque julga necessário. Não pedi-lo em troca de dinheiro seria pôr em risco a saúde do paciente. Por outro lado, se não era necessário e mesmo assim pediu, por que o fez? A quem interessava o pedido indevido?
A confiança na palavra do médico, ponte entre a vida e a morte, é a essência da relação com o paciente. É gravíssimo desmoralizá-la a troco do que em profissões menos nobres se chamaria gorjeta.
Essa relação tem uma origem sagrada. Deus tutelar da medicina, Esculápio viveu em Epidauro e foi elevado ao Olimpo por suas práticas curativas, misto de conhecimento e deferência com o sofrimento humano. À sua morte espalharam-se pelo mundo antigo templos em seu louvor, construídos por discípulos e sacerdotes aos quais acorriam peregrinos em busca de alívio para seus males. Neles havia espaço para que pernoitassem e repousassem durante a convalescença. Nasciam os hospitais e seus médicos.
Gerações mais tarde um descendente de Esculápio, Hipócrates, abre caminho para a medicina moderna anunciando que os males não vinham dos deuses, mas da natureza, e que, descobertas as causas do mal, na própria natureza encontraríamos seu remédio. Nascia o diagnóstico. Os escritos de Hipócrates são o fundamento da ética médica.
A travessia da dor e da morte empresta à relação médico-paciente um caráter de confiança mesclada de gratidão.Transformada em prestação anônima de serviço, essa relação está adoecendo. Quem não teve, em um hospital ou posto de saúde, a experiência de ser atendido por um médico, depois controlado por outro, e mais tarde por um terceiro, desconhecido? Quem não sentiu, então, a vertigem do desamparo? Onde a intimidade que unia o paciente ao médico, autorizando a nudez do corpo e da alma fragilizados?
Mais que um serviço, o que se poderia explicar pelas necessidades do atendimento de massa, contaminada pela lógica do mercado , a medicina corre o risco de se tornar um produto.
O episódio da consulta bonificada fere a dignidade dos médicos e o direito dos pacientes. A solicitação de exames desnecessários, por sua vez, suscita interrogações sobre a medicina tecnológica. Apesar dos inestimáveis serviços que presta, sobretudo na prevenção de doenças como o câncer de mama, estaria a medicina tecnológica induzindo a um hiper consumo de exames oferecidos por uma pletora de empresas?
Onde a verdade, onde a impostura? Não estaria o paciente sendo vítima do fogo cruzado de uma sombria batalha por lucros? Essas dúvidas só a ética médica pode dirimir.
Segundo ato, a definição mesma de doença. Antes uma sensível pane do corpo, hoje ela se define como um avesso da expectativa da saúde perfeita, horizonte marqueteiro que recua quanto mais nos aproximamos dele. A cada item dessa pauta inesgotável corresponde uma oferta terapêutica, um produto novo colocado no mercado ou um serviço que alguém se dispõe a prestar. Afinal, não é a oferta que induz a demanda?
Prospera a invenção das doenças. A criança travessa – diagnosticada como hiperativa – precisa supostamente de atendimento psicológico ou de tranqüilizantes. E há quem, sem necessidade de cuidados especiais, pague a um personal – esse anglicismo abreviado que se incorporou ao nosso vocabulário – para simplesmente caminhar a seu lado, já que o exercício diário é necessário e, se não praticado, mandamos para nós mesmos a conta da culpa.
As farmácias assépticas que substituem nas esquinas a alegria dos bares são o depoimento urbano sobre a medicalização da vida e a ampliação do mercado
da saúde. Os filósofos iluministas já desconfiavam que esse negócio iria prosperar. Voltaire, na rubrica «doença» de seu Dicionário Filosófico, põe na boca de um médico: «Nós curamos infalivelmente todos aqueles que se curam a si mesmos.» Rousseau, no Emílio, é ainda mais categórico: «Impaciência, preocupação e, sobretudo, remédios mataram pessoas que a doença teria poupado e o tempo curado.»
A saúde é, hoje, uma caixa-preta a ser aberta pelos médicos que honram o juramento de Hipócrates e pacientes inseguros que querem se defender das hipocrisias. Ela guarda as duas faces perversas de um mesmo negócio: a deriva da medicina de mercado e o mito da saúde perfeita. Em todos os sentidos, ambos nos custam caríssimo.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora.
Este artigo foi reproduzido pelo jornal O Globo, na edição de 30 de abril de 2011.
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