Marcelo Queiroga*
O sistema de saúde do Brasil (público e privado) é extremamente complexo e tem um compromisso social abrangente. Aspectos como acesso, financiamento e gestão estão na ordem do dia. As sociedades de especialidade têm, sim, papel relevante nesse contexto, pois atuam na titulação e atualização dos especialistas, sendo responsável pela difusão do conhecimento, com esteio na ciência baseada em evidências.
A qualificação médica é fator preponderante na eficiência da saúde e fundamental na sustentabilidade do sistema como um todo. A autonomia do médico é um dos preceitos da ética biomédica, conforme prevê o Código de Ética Médica: “é direito do médico: indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente”. Nesse sentido, as diretrizes societárias devem ser a referência de práticas cientificamente reconhecidas. Essas diretrizes, elaboradas tradicionalmente pelas sociedades de especialidade, norteiam a atividade profissional do médico e são úteis para respaldar políticas públicas que podem resultar em melhores indicadores de saúde para o Brasil.
O rigor na avaliação da qualidade da evidência científica deve nortear a elaboração de qualquer diretriz, pois por vezes nos deparamos com conflitos de interesse decorrentes da relação com a indústria dedicada à saúde. Assim, benefícios limítrofes verificados em ensaios clínicos randomizados (ECR), muitas vezes financiados pela indústria, não podem servir para ensejar recomendações fortes em diretrizes de uma sociedade científica.
O país clama por ética, e a transparência na elaboração desses documentos deve ser continuamente perseguida. Não podemos nos furtar a olhar de frente para essa questão. Um integrante de elaboração de diretriz que tiver conflito de interesse com qualquer tema a ser recomendado não pode participar do processo decisório, e a simples exposição de conflito de interesse já não é mais suficiente.
Defendo uma maior independência nesse processo, que não pode mais simplesmente compilar o expresso nas diretrizes das sociedades internacionais. No caso da cardiologia, os documentos da European Society of Cardiology, do American College of Cardiology e da American Heart Association são as referências. Apesar da grande expertise dessas sociedades, precisamos ter documentos mais condizentes com a realidade brasileira e comprometidos com a sustentabilidade do sistema de saúde do Brasil. É evidente que a literatura internacional é importante e precisa ser avaliada e estudada, mas é necessário ponderar cada ponto para conferir relevância e equilíbrio às recomendações anotadas em uma diretriz.
No caso de terapias inovadoras, como procedimentos ou fármacos ainda não aprovados pelas instâncias regulatórias brasileiras, a recomendação para uso no país deve ser ponderada. Recomendar condutas não referendadas em políticas públicas ou de saúde suplementar pode servir para estimular litígios contra o Estado brasileiro, uma agenda de risco que inverte prioridades e compromete a sustentabilidade do sistema. No mesmo sentido, deve haver cautela para recomendar em diretrizes terapias para as quais os médicos brasileiros ainda não estejam plenamente capacitados, sobretudo procedimentos invasivos e cirúrgicos.
Como a maior parte da população é atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), as diretrizes devem levar em consideração, além da evidência científica, a sustentabilidade econômica das recomendações. Por força de uma legislação (Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90), a competência de elaborar protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, no âmbito do SUS, é do Ministério da Saúde, especificamente da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec). Embora as diretrizes de sociedades científicas obedeçam a uma lógica distinta da de uma diretriz governamental, não se pode simplesmente desconsiderar os conceitos utilizados pelo Ministério da Saúde para a elaboração dos documentos – mesmo que seja para criticar e sugerir alterações à Conitec, se for necessário.
A sustentabilidade da saúde passa, necessariamente, pelas entidades de especialidade e pelo papel que elas têm na sociedade em geral. As diretrizes societárias precisam ter credibilidade e independência não só para continuar a nortear a decisão dos médicos, mas também para orientar os técnicos da saúde suplementar e do próprio Ministério da Saúde.
As sociedades científicas, amparadas na tradição e credibilidade que sustentam perante os médicos, devem contribuir na difusão do conhecimento técnico e científico consolidado, por intermédio da elaboração de diretrizes apropriadas, conferindo eficiência à ação médica para interferir positivamente na adoção de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, como prescreve a Constituição Federal.
*Presidente eleito da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
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