Escrito por Mauro Brandão*
Ao contrário do que alguns pensam, a luta pela regulamentação do ato médico não é uma simples lide corporativa. Não se pretende garantir uma «reserva de mercado» aos médicos, cerceando a atuação de outros profissionais de saúde. Propagam tais inverdades aqueles interessados em desmoralizar a luta, de extrema importância para toda a população.
Das muitas aleivosias que hoje circulam pela Internet, destacamos o seguinte comentário acerca do PLS 25/2002: «Os médicos se julgam donos da verdade, querem impor a medicina baseada nas ciências ocidentais, sob o domínio do mercado neoliberal e influenciada pela indústria farmacêutica multinacional…». Vale destacar o curioso título da matéria: «Urgente! O futuro do nosso povo está em perigo! Os tratamentos vão ficar mais caros!».
Para resgatar a verdade, inicialmente é preciso lembrar que, além de padecer com a escassez de recursos, o setor saúde também é criticado pelo mau gerenciamento das verbas a ele destinadas. Exorbita na adoção de medidas administrativas «racionalizadoras», sempre justificadas pela necessidade de conter os custos, mas que acabam por interferir na realização do ato médico, em prejuízo dos interesses da clientela. Não se observa, na conduta de boa parte dos dirigentes públicos e privados, o cuidado com ações gerenciais capazes de, a um só tempo, controlar gastos para viabilizar a assistência e garantir a integridade e qualidade dos atos médicos.
A lógica que predomina nas políticas de saúde implementadas nos últimos anos é a da redução dos gastos com a assistência ,não importando as conseqüências. O Banco Mundial, em seu famoso relatório anual de 1993, consolidou a doutrina cujo receituário tornou-se a fonte obrigatória de políticas para os gestores da saúde no mundo pobre. Em seu prefácio, o presidente do banco resume as diretrizes para as políticas públicas nos países em desenvolvimento: «Orientar os gastos públicos em saúde para ajudar os mais pobres, aplicando-os em programas de baixo custo e alta eficácia, «além de» direcionar o financiamento governamental para a saúde pública e serviços clínicos essenciais, cuidando para que os demais serviços sejam cobertos por financiamento privado, em geral pelos seguros, privados ou sociais».
A interpretação destes mandamentos traduziu-se na máxima «medicina de segunda para gente de segunda». Boa parte dos nossos gestores não se cansa de implementar políticas marcadas pela redução de custos e qualidade duvidosa, atingindo cruelmente a população mais necessitada dos serviços de saúde. Para os que têm dinheiro, a assistência seria garantida pelos seguros privados. Com efeito, é nesse período que se verifica o boom dos planos de saúde, muito embora médicos e usuários reclamem constantemente dos abusos por eles praticados. É nesse contexto que devemos analisar o projeto do senador Althoff. Sabemos que emanam do próprio ministério (e de secretarias de saúde) portarias e resoluções especialmente elaboradas com o intuito de cercear o ato médico. Aí estão as chamadas Casas de Parto, criadas com a promessa de «humanizar» a parição – mas que na prática excluem o profissional médico da assistência à gestante. Também são muitas as unidades de saúde que não contam com médico responsável pelos atos médicos.
Animados com as iniciativas governamentais, alguns conselhos de fiscalização das outras profissões de saúde aprovam resoluções outorgando a seus filiados prerrogativas até então exclusivas dos médicos, quase todas em flagrante infração às leis que regulam os seus misteres.
É comum ouvirmos de alguns destes gestores um discurso articulado, defendendo suas políticas consoante o princípio «democrático» da igualdade dentro da equipe de saúde. Segundo eles, o chamado «poder médico» – qualificação pejorativa da liderança do médico na equipe – é coisa do passado e não deve prevalecer. Sob a ótica equivocada de uma falsa igualdade de direitos, cuidaram de nivelar por baixo as tabelas salariais do setor público e tentam constantemente substituir o médico nas atividades que requerem capacitação e habilidade específicas da profissão. A exclusão do médico da assistência traz economia para os gestores e risco para os usuários. Chocou a opinião pública denúncia recente publicada na revista IstoÉ, envolvendo o óbito de uma gestante em São Paulo. Ela desenvolveu um quadro de eclampsia, pois o diagnóstico de hipertensão arterial não fora feito pelo enfermeiro que a assistia e que, segundo a denúncia, era o responsável pela paciente. E nem poderia, pois este profissional não é habilitado para fazer esse diagnóstico. Excluir ou simplesmente tentar minimizar o papel do médico na assistência e na equipe de saúde significa expor os demais profissionais a situações difíceis, constrangedoras, absolutamente injustas para quem não está capacitado.
Aqui, o rei está nu. Em que base teórica se sustenta a «democrática igualdade» entre profissionais tão desiguais? Não existe. A ordem é reduzir custos, a qualquer preço. Se com o médico é mais caro, façamos sem ele. Apopulação usuária? Já se disse uma vez que não passa de mero detalhe. Contradita o «discurso democrático da igualdade entre as profissões» a prática neoliberal da submissão ao mercado. Afalácia do título do artigo da Internet volta-se contra o seu criador.
Não se coaduna com o ideário neoliberal, obcecado em perseguir o lucro máximo, a existência de um ofício cuja corporação organizada luta por uma assistência de qualidade, além de propugnar por uma saúde digna para todo o povo. Isso inclui emprego, moradia, saneamento, alimentação adequada, lazer, enfim, tudo o que causa arrepios aos ouvidos dos seguidores da receita do Banco Mundial. E que ainda luta pelo reconhecimento e valorização do seu trabalho, consciente de sua importância para o êxito de qualquer política de saúde. Quanto aos demais profissionais, hoje embalados por sonhos de ampliar seus mercados, que reflitam profundamente sobre os graves riscos embutidos neste sórdido presente de grego.
Estes gestores, médicos inclusive, que alimentam o ódio a seus pares insuflando a bandeira «diga não ao ato médico», há muito abandonaram a esquerda, mudaram de lado, se é que algum dia lá estiveram. Vivem hoje subjugados aos ditames do grande capital, dando as costas à população que juraram servir. É a esta nova «esquerda neoliberal» que Roberto Campos se referia quando, em êxtase com o ressurgimento do liberalismo econômico, vaticinava a bancarrota de todos os modelos existentes «pela adesão aos princípios da economia de mercado, substituindo a igualdade pela eficiência».
Mas o novo milênio chegou, e com ele a esperança de profundas mudanças para nos livrar do pesadelo neoliberal. O novo governo, consagrado nas urnas, tem a responsabilidade de promovê-las. Este debate deve ganhar as ruas. Afinal, como vimos, no bojo desta luta pela definição dos limites e da abrangência dos atos médicos o que está em jogo é o futuro da saúde do povo brasileiro.
* É infectologista, mestre em Saúde Pública e conselheiro federal.
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