Escrito por Eliane de Souza
O Programa Saúde da Família (PSF) representa um esforço meritório do governo para cumprir seu dever de prestar cuidados sanitários a todos os brasileiros, como manda a Constituição e o interesse nacional. Medida bem intencionada, apesar de insuficientemente planejada, apresenta alguns defeitos graves a serem corrigidos. Como se sabe: burla a legislação trabalhista simulando uma bolsa inexplicável para pagar aos seus profissionais; ninguém responde pelo dever de cumprir os compromissos com os técnicos; possibilita excessiva exposição dos médicos aos caprichos de autoridades (e co-autoridades) municipais e uma certa imprecisão de limites nas competências técnicas / profissionais dos membros da equipe. Mas apresenta um problema ainda mais grave, porque compromete o interesse de sua clientela, a população: não conta com pediatra.
Até o final do século XIX e início do XX, os mesmos médicos cuidavam dos pacientes idosos, adultos , crianças e adolescentes em todas as suas necessidades clínicas. A Pediatria não surgiu apenas como medida corporativa da organização do mercado de trabalho médico – embora este elemento representasse relativo papel -, mas, principalmente, como decorrência de dois fatores: um, técnico; outro, psicossocial. O avanço técnico- científico ocorrido na Medicina fez surgir um volume tão imenso de informações simultâneas que impossibilita o médico as acompanhar todas.
Isto deu lugar à especialização. Mas na Pediatria houve mais uma influência importante: o reconhecimento de que a criança não é um adulto pequeno e que a adolescência não é uma doença (em latim, dolencia) e nem apenas uma crise no desenvolvimento.
A clínica pediátrica apresenta características bastante peculiares no que respeita à semiologia, ao diagnóstico, à terapêutica e, sobretudo, à relação médico-paciente. Peculiaridades que distinguem a sua prática do quê fazer médico comum. O segundo fator, de natureza psicossocial, nasceu do sentimento de responsabilidade dos médicos, da consciência do dever de prestar um bom serviço aos seus pacientes e à sociedade.
A gênese da Pediatria decorreu do entendimento da necessidade de um médico que cuidasse da saúde dos lactentes, crianças e adolescentes; que os acompanhasse em seu crescimento e desenvolvimento, ampliando suas oportunidades de atingir o pleno potencial quando adultos. Constituiu uma alternativa eficaz à conscientização crescente de que os problemas de saúde das crianças e adolescentes diferem daqueles dos adultos e que a resposta do doente à enfermidade e ao estresse varia com a idade; que sua identificação exige metodologia específica, como específicas devem ser as medidas terapêuticas aplicáveis. Ninguém que conheça a Medicina ignora que a relação médico-paciente e médico-família constitui o núcleo mais essencial de sua prática como relação humana de ajuda e serviço. E é esta dimensão de ajuda solidária que assinala a Medicina como profissão – e se mostra peculiar no exercício da Pediatria, que é a medicina geral de crianças e adolescentes.
Um pediatra não se improvisa. Nem nasce feito. No plano técnico, sua formação está voltada para as exigências peculiares que seus pacientes e o avanço científico lhe impõe. No plano relacional, a experiência do pediatra é também bastante original quando comparada à dos demais profissionais da Medicina. Sua relação inter-subjetiva é mais ampla. Envolve o paciente e sua família.
Em todas as sociedades é o pediatra o profissional que faz parte da vida familiar. Não apenas convive com a família de seu doente, integra-a. Nenhuma outra área da Medicina promove este fenômeno com tal amplitude e intensidade. Os pediatras também se distinguem como agentes sociais, como cidadãos prestantes. Como médicos políticos, no melhor sentido da expressão.
Sempre se preocuparam com a qualidade da assistência às crianças e adolescentes e sua formação , historicamente, sempre esteve direcionada para as três instâncias da assistência realizada no sistema público de saúde: o cuidado primário, o atendimento secundário e a assistência terciária.
A amplitude de sua formação o credencia a atuar em qualquer nível de assistência. Sua prática não é restritiva, qualquer que seja o critério de avaliação utilizado. O pediatra não se atém apenas aos sintomas: no atendimento aos pacientes, além das perguntas genéricas, avalia o desenvolvimento e crescimento, orienta a alimentação e dieta, a prevenção de acidentes, as vacinas e analisa as relações familiares e sociais.
Nos anos 40, quando foram organizadas as primeiras equipes médicas modernas e modelos no Serviço Especial de Saúde Pública para fazer funcionar suas unidades mistas em todo o país, estas constavam de um clínico geral, um cirurgião e um pediatra. Já naquela época sabia-se que o estado da arte médica não permitia faltar pediatra na assistência médica. Hoje, ter acesso ao pediatra é um direito adquirido de crianças e adolescentes em todo o mundo.
No Brasil, a política governamental de implantação do PSF tem insistido em evitar a presença do pediatra no núcleo das equipes – entendimento que representa um atraso de meio século. Pela conceituação dos idealizadores do Programa Saúde da Família, o pediatra é considerado um especialista e, como tal, não deve participar da equipe mínima. Com esta política o governo promove uma discriminação inaceitável, pois priva as crianças das classes sociais desfavorecidas do acesso ao seu médico específico, o pediatra.
Realiza, assim, uma política de reforço da iniqüidade na assistência à saúde. Por isso, o pediatra está sendo afastado do atendimento no cuidado primário do Serviço Público e em pouco tempo, permanecendo a atual conjuntura, a ele restará apenas fazer atendi mento em cuidado primário somente para as crianças de melhor nível socioeconômico. O que constitui grave violação do compromisso de eqüidade do sistema de saúde e de seus profissionais.
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