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Escrito por  Luiz Salvador de Miranda Sá Júnior*

Na Antigüidade, o trabalho era dividido em trabalho livre e trabalho escravo. O trabalhador era propriedade do seu senhor e esta forma de relação modelava toda produção de riqueza. O escravismo, praticamente todo trabalho, mesmo o intelectual, era realizado pelos escravos e, por isto, se desqualificava. O labor das pessoas livres deveria se diletante.

Na época medieval, deu-se uma pequena mudança. O trabalhador virou servo da gleba (um pouco menos que um escravo e não mais diretamente do senhor) e apareceram artesãos e comerciantes livres que voltaram a emprestar dignidade ao trabalho (menos ao servil).

Na época moderna, o servo tornou-se empregado. Passou a ter tempo para o ócio. E o trabalho produtivo foi dignificado, desde que não fosse manual (mecânico). A institucionalização das profissões destacou o aspecto ético do trabalho intelectual e gerou um proletariado socialmente destacado. Pois, proletário é todo trabalhador assalariado.

A industrialização e o comércio em escala deram fim aos artesãos e aos pequenos comerciantes independentes, destruíram as formas já assentadas de solidariedade orgânica nos trabalhadores livres proletarizados e deram lugar às novas formas de socialización laboral. As guildas de artesãos livres que viviam do trabalho autônomo deram lugar aos sindicatos e uniões operárias, defensoras dos interesses proletários. No caso do trabalho médico, esta transformação foi muito mais gradual.

No Brasil, desde a colônia havia médicos empregados, mas com exceção dos higienistas, pouquíssimos deles podiam ser chamados de proletários por viverem exclusivamente de empregos. E, mesmo estes, tinham a possibilidade de exercer com sucesso o trabalho livre se as condições de seus empregos se deteriorassem. As Sociedades de Medicina eram as únicas entidades médicas. E isto lhes dava um grande poder de negociar vantajosamente com os empregadores públicos ou privados.

Esta situação foi mudando com o aumento de empregos para médicos.

Neste momento, início do século XX, década de 30, as entidades médicas se dividiram em duas: as sociedades ou associações médicas (que representavam os interesses dos médicos autônomos) e os sindicatos (que representavam os interesses dos médicos assalariados cujo número era crescente).

A crise do trabalho na época contemporânea, a vitória da Revolução Socialista de 1917, na Rússia, e o surgimento do Poder Soviético deram novo alento ao trabalho assalariado, revitalizando a situação social dos proletários. Aos capitalistas, pareceu melhor dar alguns anéis que perder os dedos.

A II Guerra Mundial e a Guerra Fria fomentaram esta situação. Esta nova realidade política, marcada por importantes conquistas trabalhistas benéficas para os trabalhadores beneficiaram também aos médicos proletarizados (ainda quem bem menos que a massa operária), mas seu número relativo prosseguiu crescendo.

O fim da Guerra Fria, a derrocada do Poder Soviético, a Revolução Tecnológica, a corrupção política, a informatização, a automatização da produção e o fortalecimento do capital bancário especulativo (inclusive do pseudo-capital) desequilibraram a balança da relação capital x trabalho em favor do capital.

A imensa concentração de capital determinou uma mudança radical no perfil da pirâmide populacional, estruturada em função da renda per capita. Afunilou-se seu topo com importante achatamento de sua base. Cumprindo antiga predição, os pobres se tornaram cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos, ainda que diminuísse, acentuadamente, e aumentasse, paralelamente, o número de pobres.

As camadas médias (composta pelas assim chamadas classes médias integradas pelos pequenos proprietários, pequenos comerciantes, pequenos industriais, trabalhadores autônomos e funcionários mais bem remunerados de empregadores públicos e privados) estão em processo de extinção.

Esta nova situação, que repercutiu em todas as formas de trabalho assalariado, teve também uma intensa influência no trabalho médico. A clínica privada encontra-se em franca decadência, ameaçada de desaparecer. Os planos de saúde estrangulam, simultaneamente, os médicos, os serviços credenciados e os seus usuários. Os serviços públicos, além de pagarem valores obscenos pelo trabalho médico, estimulam formas ilegais de admissão de médicos (falsas bolsas de trabalho, “pseudo gratificações”, auxílios moradia e de alimentação inexistentes e outras vigarices) e ainda autorizam profissionais não médicos a exercerem procedimentos privativos destes profissionais no atendimento aos doentes pobres. Para o cúmulo da desfaçatez, os agentes parlamentares do governo “popular” bloqueiam ou extraviam a tramitação da legislação que objetiva assegurar aos médicos seu papel profissional. A Lei do Ato Médico. Legislação semelhante a que todas as demais profissões de saúde (todas, sem qualquer exceção) já têm. Demais profissões que se aliam contra os interesses dos médicos, ignorando que as próximas vítimas da desregulamentação neoliberalista serão eles próprios. Alvos bem mais vulneráveis que os médicos.

Esta situação de crise deteriora a tradição médica de dedicação ao serviço público, estimula uma perversão da idéia de vocação médica enquanto desprofissionaliza a atividade laboral daqueles agentes sociais e desautoriza o movimento sindical médico.

Neste quadro inédito de crise profissional, os médicos reagem como podem e sua primeira reação foi a de criar uma tabela referencial de preços de seus serviços – Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos – e reunirem suas entidades representativas para fazerem frente às estas ameaças.

* É psiquiatra, professor titular de Psiquiatria da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Universidade Católica Dom Bosco, 1º Secretário do Conselho Federal de Medicina e autor da Resolução CFM n° 1627/2001, que define o ato médico.

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