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Escrito por Luiz Antonio Santini*

Todos os anos, quando o Congresso Nacional discute o orçamento, reaparece o tema do fi nanciamento da saúde. É uma questão que mobiliza a bancada da Frente Parlamentar da Saúde, o Ministério e entidades do setor, como as ligadas ao movimento da reforma sanitária, questionando a transferência desses recursos para programas socais e de saneamento. Argumenta-se que essas aplicações redundarão em ganhos indiretos para a saúde, pois a melhoria na renda e o acesso à água tratada e à rede de esgoto representam impacto positivo nos indicadores sanitários — o que é fato.

No entanto, a discussão é bem mais complexa e exige um esforço maior de análise, não permitindo uma conclusão linear e simplista. O conceito de saúde é composto por diferentes e heterogêneas realidades e, de forma alguma, pode ser reduzido ao antônimo exato de doença.

Para melhor compreensão do problema, cabe desde logo separar o que são as ações gerais de governo, cuja melhoria elevaria o padrão de saúde da população, daquelas que dizem respeito diretamente às responsabilidades do Estado no financiamento dos serviços de atendimento e tratamento de pacientes. É claro que recursos aplicados não só em saneamento e renda, mas também em educação, transporte, lazer e meio ambiente, contribuem para a melhoria da saúde em geral, e este é o conceito de saúde expresso pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e na Constituição Brasileira. Outra questão distinta é a quantidade e a qualidade do gasto direto em assistência médico-sanitária.

A definição dos itens que constituem as despesas com saúde é complexa e varia de acordo com o país. Para que possam ser feitas comparações entre as diferentes realidades, o Banco Mundial indica alguns parâmetros. São classificadas como despesas em saúde as ações de saúde pública que beneficiem a população, serviços preventivos e curativos, além de programas de repercussão direta no status da saúde, como os de planejamento familiar e educação em saúde.

Pesquisa — Segundo estudo recente divulgado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), a partir de dados da OMS sobre os gastos em saúde dos 60 maiores países do mundo, o Brasil está gastando aproximadamente três vezes menos do que a média mundial, de US$ 806, ocupando a 35ª posição no ranking mundial. Mesmo assim, gasta duas vezes mais que a média dos países de renda per capita média baixa e baixa, dos quais faz parte. Comparando-se alguns indicadores apresentados no estudo, como a taxa de mortalidade infantil e a expectativa de vida, verificamos que os resultados por nós alcançados demonstram a necessidade de melhorar a eficiência desses gastos.

É preciso considerar que a complexidade da avaliação dos indicadores tradicionais de saúde é fundamental para nortear as ações de governo, mas não permite conclusões simplistas. A correlação entre gasto per capita em saúde com a queda da mortalidade infantil ou aumento da expectativa de vida não é facilmente mensurável. Aumentar o gasto também não signifi ca necessariamente ampliar o acesso da população ou distribuir os serviços de forma menos desigual. Dados da Organização Mundial de Saúde, de 1997, mostram que o gasto global com atenção à saúde foi de 8% do PIB mundial. Os países de renda baixa ou média, onde vivem 84% da população mundial, gastam apenas 11% com saúde.

A comparação dos indicadores no trabalho da Firjan mostra que dez dos 26 países de renda média baixa ou baixa que gastam menos que o Brasil apresentam alguns indicadores de expectativa de vida superiores aos nossos, como México, Peru e China. Por conseguinte, podemos concluir que os resultados das ações gerais sobre a saúde da população, quer sejam produzidos por modificações ambientais, quer sejam por políticas, são virtuais, aleatórios e de longo prazo.

Seus impactos sobre a saúde podem levar vários anos para aparecer. Esse impacto é probabilístico e, portanto, não é adequado para dimensionar a efi cácia das intervenções do sistema de atendimento e tratamento para o qual os recursos orçamentários são alocados.

Segundo um princípio básico da epidemiologia, na medida em que não se está em um mundo de causalidade perfeita, o que se verifi ca em média, de maneira probabilística em uma população, não se aplica obrigatoriamente a cada um dos indivíduos desta mesma população. Tomarei como exemplo a questão do atendimento ao câncer para demonstrar a necessidade da ampliação dos recursos para a saúde em nosso país. O Brasil terá este ano 472.050 novos casos de câncer, de acordo com as estimativas do INCA, e já representa a segunda causa de morte, com mais de 130 mil óbitos anuais.

Os gastos com o tratamento do câncer crescem anualmente no Brasil. Aumentaram mais de 100%, entre 1999 e 2004, somente em quimioterapia, radioterapia e internação hospitalar. Se observarmos a distribuição regional deste aumento, verifi camos que os gastos foram maiores na Região Sudeste, permitindo tão-somente absorver parte da demanda reprimida e não a ampliação da oferta de serviços. Os programas que estamos desenvolvendo para aumentar a capacidade de diagnóstico precoce e ampliar a rede de atendimento, especialmente nas regiões mais carentes de assistência, exigem mais recursos. Quando nossa capacidade de diagnóstico precoce aumentar, se espera aumento ainda maior dos custos.

Longevidade — O aumento, tanto de incidência quanto de mortalidade, é uma tendência mundial, provocada pela crescente expectativa de vida da população e outros fatores da sociedade de consumo sabidamente carcinogênicos. No Brasil, a população de faixa etária acima de 65 anos cresceu de 6,65 milhões, em 1991, para 9,32 milhões, em 2000. A projeção é que chegue a 19,12 milhões, em 2020, contingente que representará 8,7% da população. O aumento do gasto com assistência médica nessa faixa é crescente, dada a complexidade e a maior freqüência dos procedimentos médicos, além do tempo médio de hospitalização mais longo. Dados do SUS mostram que a taxa de internação entre pessoas acima de 65 anos é 2,5 vezes superior à média dos grupos das demais faixas etárias.

Estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (IPEA), de fevereiro de 2005, aponta uma série de motivos para o aumento da demanda por serviços de alta densidade tecnológica, tendência universal que leva a custos crescentes. Além do aumento da população e da longevidade, a incorporação de novas tecnologias no campo da saúde, que exige recursos humanos especializados, medicamentos e equipamentos de ponta, não é substitutiva. Ou seja, novos recursos terapêuticos ou de diagnóstico são sempre acrescidos aos anteriores. A incidência cada vez maior de doenças crônicas, degenerativas e do trauma, somada ao surgimento de novas doenças, exigem terapias complexas. Outros fatores que pressionam a demanda do setor público com saúde é o reduzido papel dos serviços privados em procedimentos altamente especializados e o aumento do grau de consciência de cidadania, que torna a população mais exigente em relação aos direitos de acesso integral à saúde.

Sabemos que mais de 60% dos pacientes de câncer (exceto de pele) atendidos pelo SUS encontram-se em estágios avançados da doença, o que requer tratamentos caros e com eficácia menor. Num esforço para reverter esse quadro, o Ministério da Saúde definiu, no fi m do ano passado, uma nova Política Nacional de Atenção Oncológica, que tem como uma de suas principais fi nalidades ampliar o olhar sobre o câncer como problema de saúde pública. A mudança de perspectiva signifi ca não focar os investimentos apenas no tratamento de alta complexidade, mas criar uma linha de cuidado que contempla desde ações de promoção da saúde e prevenção da doença a cuidados paliativos. Foram estabelecidas prioridades, como o controle e combate aos cânceres de maior incidência entre as mulheres: de colo de útero, prevenível e curável, e de mama, segundo em incidência no país.

A definição de prioridades é uma forma de melhor qualificar os gastos com saúde. Os investimentos passam a ser conseqüência de uma análise abrangente e estratégica do problema de saúde, e não resultado do repasse de recursos para pagamento da produção de serviços e procedimentos com base histórica. Cada vez mais se percebe que o enfrentamento do problema de saúde pública não pode fi car restrito às esferas governamentais. É crescente a participação de outros segmentos da sociedade, como organizações não-governamentais, centros de pesquisa e universidades, na busca de soluções para os diferentes problemas de saúde que afetam a população. O desafi o está em articularmos todas essas ações de forma que se possa fazer uma intervenção mais integral e com maior possibilidade de efi cácia.

Com certeza, há um desafi o em qualifi car o gasto em saúde, considerando a necessidade de compatibilizar os recursos disponíveis com todas as demais necessidades sociais. Existe, e é reconhecida em todo o mundo, uma crise no fi nanciamento da saúde, que não será equacionada com uma visão tão simplifi cadora quanto a que sustenta esses argumentos generalizantes que propõem transferir recursos da saúde. Esses argumentos confundem campos heterogêneos: o atendimento aos doentes e a vasta pauta do bem-estar social. E, na defesa de valores humanitários, exclui da discussão o alto preço social de não gastar no diagnóstico e tratamento dos doentes. Cada vez mais se percebe que o enfrentamento do problema de saúde pública não pode ficar restrito às esferas governamentais

* É diretor geral do Instituto Nacional do Câncer (INCA).

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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