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Wilson Luiz Sanvito e Zied Rasslan*

Os últimos 60 anos têm testemunhado profundas transformações em todas as esferas da atividade humana. Vivemos na era da impermanência, em que os avanços científico-tecnológicos, que se sucedem com espantosa rapidez, causam tal impacto nos fenômenos sociais que muitas vezes geram situações caóticas ou mesmo conflitantes no relacionamento humano. A euforia e o “oba-oba” diante dos progressos materiais prostram muitos diante das máquinas, em uma atitude fetichista de meros adoradores de ídolos materiais. A atenção dos indivíduos está voltada, sobretudo, para objetos, e não para o ser humano. A revolução dos meios de comunicação, por meio de sua principal arma, que é a manipulação, faz dos cidadãos comuns meros robôs.

Efetivamente, os meios de comunicação nos bombardeiam diariamente com os prodígios da medicina, criando uma nova mitologia: a da doença sob controle. A medicina contemporânea, balizada pelo complexo médico-industrial (indústria de equipamentos médicos/indústria farmacêutica) e ancorada na biologia molecular, vem avançando de modo acelerado em todos os campos. A tecnologia médica tornou o homem transparente mediante o estudo das imagens do seu interior e ainda permite ver o homem pelo avesso, por meio de procedimentos endoscópicos com microcâmeras. O que antigamente eram apenas técnicas diagnósticas vêm se tornando, cada vez mais, procedimentos terapêuticos (radiologia intervencionista, cirurgias laparoscópicas, colocação de próteses endovasculares etc.). Esse avanço exponencial provoca um frisson não só no meio médico, mas também na sociedade – e a “escatologia científica” passa a imperar.

Por outro lado, há um descompasso entre avanços médicos e assistência médica de qualidade. Existe uma brecha entre a “medicina científica” e as necessidades dos pacientes. Outro viés da medicina contemporânea é o modelo médico adotado pela “medicina oficial”. O modelo é biológico (ou biocêntrico), no qual o corpo humano é considerado máquina, que pode ser analisada em suas diferentes peças, e a doença é encarada como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos. Em linhas gerais, esse modelo (priorizado nas escolas médicas) adota o seguinte figurino: 1) o doente como objeto; 2) o médico como mecânico; 3) a doença como avaria; 4) o hospital como oficina de consertos. Mas é preciso entender que o homem adoece de suas condições biológicas, psicológicas, sociais, culturais e ambientais. Esse modelo biológico, amparado na tecnologia, tornou a prática médica segmentada, com o superdimensionamento das áreas especializadas. A exaltação da explicação científica e os avanços técnicos acabaram determinando a atomização do conhecimento, cuja pulverização tornou o médico generalista inseguro e, muitas vezes, mero triador de casos para os especialistas. Por seu lado, o especialista só assume a responsabilidade sobre o “órgão doente” de sua área. É mais ou menos como se o paciente fosse o “seu estômago”, o “seu pulmão”, ou coisa que o valha. Assim, um médico leva a outro. A consulta com vários médicos acaba corrompendo a interação médico-paciente, configurando-se nesse caso “a trama do anonimato”. Regra de ouro: é preciso que o doente saiba o nome de seu médico, tanto no sistema público como nos serviços médicos conveniados. Deve ser a sua referência.

Há, enfim, uma deterioração crescente da medicina artesanal (anamnese/exame físico) e uma supervalorização dos exames complementares e de atos médicos técnicos. De sorte que o cenário hoje é de uma medicina de pareceres especializados e de natureza hospitalocêntrica. Esse modelo, além de elevar custos, é de baixa eficiência para um sistema de saúde abrangente. Vejam o que afirma o médico americano Alvan Feinstein: “A anamnese, o procedimento mais sofisticado de medicina, é uma técnica de investigação extraordinária; em pouquíssimas outras formas de pesquisa científica o objeto investigado fala”.

Por outro lado, é o doente quem deve estar no centro do sistema, e não a doença. Diz-se que o bom observador é aquele que enxerga a floresta, a árvore e a folha. A porta de entrada do sistema de saúde não deve ser o hospital (a não ser para emergências), e o médico generalista deve ser a referência para o primeiro atendimento. Infelizmente essa é uma espécie em extinção.

De qualquer modo, vivemos em uma era privilegiada, pois temos uma ciência que substitui um órgão doente por um sadio, manipula genes, nos proporciona esperanças de uma vacina contra o câncer e a aids, e nos acena com os primórdios de uma medicina regenerativa de tecidos com o manejo das células-tronco. Bisturi-robô, terapia gênica, implantes de próteses artificiais, procedimentos diagnósticos preditivos, fármacos inteligentes… para onde caminha a medicina? Certamente nos avanços caminha bem, mas um discurso triunfalista da medicina só se justifica quando essa excelência estiver ao alcance de toda a população.

Na área assistencial alguns até se questionam se não estamos caminhando rumo a uma antimedicina. Seria esse o caos de transição ao qual sucederia uma nova medicina do paciente? Sabe-se lá! Segundo as palavras deliciosamente irônicas de um falso provérbio chinês, “é extremamente difícil profetizar, principalmente em relação ao futuro”. Observa-se até mesmo brecha no relacionamento entre médico generalista e médico especialista. O corpo médico vai se tornando, na linguagem de Franck-Brentano, uma imensa torre de Babel em que cada especialista fala sua língua, mais ou menos hermética, a seus colegas. Para remediar essa “babelização” e proporcionar maior entrosamento entre médicos de várias áreas, seriam recomendáveis reuniões gerais nos hospitais, além de educação médica continuada para médicos generalistas.

A porta de entrada do sistema de saúde (Sistema Único de Saúde – SUS e convênios médicos) deveria ser aberta por médicos generalistas (clínicos, ginecologistas, pediatras e cirurgiões) bem formados. Eles deveriam ser uma espécie de curinga do sistema de saúde e, portanto, aptos a lidar com uma sinusite, cefaleia primária, micose superficial ou pneumonia comunitária, sem necessidade de encaminhamento para especialistas. Por outro lado, os avanços da medicina não são acompanhados pelo aumento da satisfação dos médicos. Eles são mal remunerados e precisam (para sobreviver) de vários empregos, onde as condições de trabalho nem sempre são adequadas. Além disso, o médico não forma vínculo com o paciente que é usuário de uma instituição ou de um convênio médico. Assim, a interação médico-paciente-família, que deve tranquilizar, aliviar a dor, o medo, o sofrimento e a apreensão, fica arruinada.

Que recurso tecnológico pode substituir esse aspecto humano da medicina? Os elementos contidos nessa interação não podem ser substituídos por nenhuma tecnologia médica, uma vez que são virtudes exclusivas dos seres humanos.

No Brasil, o sistema público de saúde (SUS) é de baixa eficiência em virtude de fraudes, desperdícios, modelo de gestão inadequado e vícios estruturais, como a concentração de atendimento em hospitais nos médios e grandes centros urbanos. O modelo hospitalocêntrico encarece o custo por paciente, porque quase todo atendimento acaba se tornando complexo; além disso, ele não é de boa qualidade. É preciso deslocar o eixo, priorizando a atenção primária em uma rede bem gerenciada. O setor público tem que adotar esse modelo, o qual, bem administrado, resolve mais de 80% dos problemas de saúde da população. Tem que incentivar a prática de medicina comunitária, atuar pesadamente na medicina preventiva (vacinações, saneamento básico etc.), mobilizar recursos financeiros e humanos para o controle das endemias. É preciso criar no sistema público de saúde a carreira do médico, com critérios pautados (para a sua ascensão) na produtividade e meritocracia, e não apenas no tempo de serviço. Urge remunerar melhor estes profissionais e acabar com os múltiplos vínculos, que os levam à exaustão e, consequentemente, à baixa qualidade de assistência ao paciente. O modelo vigente penaliza médicos e pacientes.

Lamentavelmente estamos assistindo a uma desumanização crescente da medicina. Muitas variáveis concorrem para que esse fenômeno ocorra: mercantilização da medicina, altos custos operacionais dos atos médicos em um país de recursos escassos, ausência de sistema público de saúde eficiente, subfinanciamento da saúde pública, falência das universidades na sua missão formadora de profissionais da área, baixa remuneração dos profissionais da saúde, além de condições de trabalho precárias.

Pensamos que, para mudar essa situação, um conjunto de medidas deve ser implementado nas áreas da saúde e educação. Sem uma revolução nessas áreas, não temos futuro como grande potência. É preciso fazer alguma coisa, pois como diz um provérbio chinês (este verdadeiro): “Uma caminhada de mil léguas começa com o primeiro passo”.

 

*Wilson Luiz Sanvito e Zied Rasslan são professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Contato: ziedrasslan@uol.com.br.

Artigo publicado originalmente na Revista da Associação Médica Brasileira (http://ramb.amb.org.br/).

  

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