Rosimara Moraes Bonfim*
A pergunta título foi feita em uma rede social por uma médica que, em seu plantão no serviço público, entregou uma receita para uma mãe, que aos gritos exigia a receita do filho. Sua pergunta vem acompanhada de uma reflexão, pois ela não se lembrava de quando houve algo que modificou o comportamento dos pacientes. Também fica a dúvida para mim. Quando foi?
Na minha formação, nunca vi gritarem com a equipe como hoje. Não há tantos relatos de gritos nas filas de bancos, nos tribunais, nos cartórios, nas filas de ônibus, ninguém grita porque o escrivão foi almoçar, ou o marceneiro atrasou a entrega. Mas frequentemente há pessoas gritando com os plantonistas em hospitais, algumas vezes nos consultórios porque o convênio não autorizou o atendimento ou porque o médico está atrasado (muitas vezes porque está no trânsito ou estava atendendo gritos no seu plantão e não pôde sair no horário).
A polidez e civilidade de outrora foi perdida! Não se ouvem mais as palavras “muito obrigado” ou “com licença” como outrora, pois assim preconizava o trato social. “Ah! Mas o mundo mudou”, responderia o leitor. Mudou, porém não se decretou que a educação e a civilidade foram extintas. Hoje todos lembram automaticamente dos seus direitos, porém seus deveres ficam esquecidos. Há numerosos programas de TV, filmes e séries que mostram médicos como uma classe que ganha muito bem e que tem muitas horas de folga, além de namorar todos os que trabalham no plantão e eventualmente até pacientes. O povo acredita que médicos podem comprar carros de alto padrão tranquilamente e comparecer a todas as festas, havendo inclusive uma série de TV na qual médicos e residentes se preocupam mais com sua vida afetiva do que com os pacientes. Acredite, já fiz estágio no país de origem dessa série e garanto que aquele comportamento fecharia qualquer hospital daquele país, isso só com o ocorrido no primeiro episódio.
Se a imagem televisiva não ajuda, a pública também não: o médico que não faz a cirurgia é culpado, mesmo que não a tenha feito por falta de materiais ou condições. O médico que demora em atender no hospital é culpado por tentar fazer o melhor, o que atende rápido também, pois a falta de atenção primária adequada nunca é culpa da sobrecarga dos prontos-socorros. Mas cesariana, episiotomia e outras manobras obstétricas são tachadas de violência, não importa se são manobras descritas na literatura médica como salvadoras em casos extremos ou de indicação precisa. Se a mídia falou, está falado. Ninguém verá o direito de resposta, pois há uma ideia geral de que se o paciente morreu a culpa é do médico. No pronto-socorro é comum dizerem que o paciente morreu depois da injeção. Claro que haverá muitas injeções na emergência, pois é a forma de tentar levar ao organismo dos pacientes com situação grave as medicações de maneira mais rápida, pois comprimidos e xaropes, além de dependerem da digestão, podem causar vômitos.
Acho que sei quando começaram a gritar… Foi quando insidiosamente se colocou o médico como culpado de tudo, inclusive de continuar tentando resolver os problemas dos pacientes sem infraestrutura e suporte para tratamentos, sem remuneração adequada e sem o respeito social, por ter sua imagem profissional maculada por uma sensação geral difundida de que a gente não se importa. Não somos os mercenários que a sociedade pinta, e temos tentado mudar diariamente um contexto que não depende só de nos. Depende de ações politicas, de educação e, principalmente, de políticas em saúde e de carreira dos médicos, que se encontram cada vez mais ouvindo gritos e queixas, enfrentando seu trabalho como uma guerra diária. Uma minoria inadequada não representa a maioria dos profissionais, que luta por uma saúde melhor!
* Cirurgiã plástica, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e diretora de assuntos profissionais da Associação Médica de Governador Valadares (AMGV).
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