Escrito por Marco Antônio Becker*
«Estamos aceitando o nivelamento por baixo com uma passividade que dá a impressão de que está bem assim. Precisamos reagir imediatamente, ou será tarde demais.»
Ainda sob o impacto da tragédia que ceifou 199 preciosas vidas em Congonhas, especialistas buscam encontrar as causas do acidente. São várias as hipóteses, mas todas elas levam a um só caminho: a sufocante sensação de que estamos nos acostumando a conviver com menos que o mínimo. Estamos aceitando o nivelamento por baixo com uma passividade que dá a impressão de que está bem assim.
Aceitamos que os vôos atrasem horas e horas, que bagagens sejam extraviadas e até já nos programamos para isso – pior, estamos começando a nos surpreender quando o vôo sai no horário previsto. Não reagimos quando a nova pista de pouso do aeroporto de Congonhas foi liberada às pressas, sem as tais ranhuras que podem evitar deslizamento de aeronaves.
Calamos quando a Varig foi definhando sem que o governo se esforçasse para salvá-la, apesar da dívida na casa dos R$ 5 bilhões que tem com a empresa. Perdemos a nossa única empresa aérea com prestígio em todo mundo, pela qualidade do serviço, segurança de vôo, treinamento exaustivo de pilotos e rigor na manutenção. A Varig era motivo de orgulho para todos nós. Mas isso era quando ainda buscávamos a excelência.
Hoje convivemos, praticamente sem esboçar reação, sem um gesto de protesto ou um tom de voz mais elevado, com a precariedade nos serviços essenciais. Na saúde, vemos cair, a cada ano, a qualidade. Quem pode, arca com mais uma despesa para receber atendimento digno e que deveria ser um direito de todos: paga um plano privado.
O governo não destina os recursos necessários ao setor – tem outras prioridades -, nem concorda em repassar na íntegra os valores arrecadados com a CPMF, que deveria ser um plus e sua obrigação – legal, moral e ética. Hospitais e médicos trabalham com valores defasados há anos, enquanto a população vê a cada dia a deterioração de um sistema de saúde que ainda tem tudo para dar certo.
Estamos aceitando o mínimo, quase uma esmola. Precisamos reagir imediatamente, ou será tarde demais.
Quando do episódio da interdição do Posto da Cruzeiro do Sul, fui interpelado por alguns moradores daquela área. Pessoas humildes. Queriam que o Cremers levantasse de imediato a interdição ética, apesar de o PACS naquele momento ainda não apresentar as condições mínimas para uma medicina digna, sem expor os pacientes a riscos. “Doutor, nós levamos o senhor pela vila, para ver a nossa pobreza. O Postão tem problemas, mas nós precisamos dele funcionando de qualquer jeito, é o que nos resta”, ponderou uma senhora. Nunca esqueci o olhar daquela cidadã, uma pessoa simples, consciente de que poderia ter um atendimento melhor, mas que aceita o que lhe é proposto, sem reagir. Mais ou menos assim como toda a sociedade brasileira diante da corrupção, da impunidade e de vidas interrompidas em tragédias anunciadas.
* É presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers).
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