Escrito por Eleuses Vieira de Paiva*
Desde que Braz Cubas, em 1543, fundou a primeira Santa Casa, na cidade de Santos, não há ninguém ligado à área de saúde que possa duvidar do importante papel que essas instituições, beneficentes e filantrópicas, realizaram e vem desempenhando na consolidação do sistema brasileiro de saúde.
Passados quase cinco séculos, somam hoje mais de 2.000 instituições. São responsáveis por cerca de 50% dos leitos hospitalares existentes no Brasil, sendo que, de cada três leitos, um é beneficente. Os hospitais filantrópicos também assumem 37,4% das internações realizadas pelo SUS em todo o país; fazem, mensalmente, 10 milhões de atendimentos ambulatoriais, realizam um milhão de consultas e executam 250 mil exames complementares. Há ainda que se levar em consideração que a maioria dos hospitais filantrópicos participa ativamente no processo de educação continuada, programas de residência médica e estágio, desempenhando papel de relevada importância, além de responder pela maior gama de procedimentos de alta complexidade realizados no Brasil.
Proporcionalmente à sua idade, as entidades filantrópicas vêm enfrentando uma crise sem precedentes, gerando indignação daqueles que acreditam na saúde pública ao presenciar a deteriorização de sua rede hospitalar. Esse sistema, grande responsável por garantir capilaridade ao SUS, está praticamente falido, não só em São Paulo como no Brasil. Juntas, as entidades filantrópicas, a maioria formada por Santas Casas, acumulam hoje uma dívida que beira 2 bilhões de reais, devidos ao BNDES, bancos privados, fornecedores e ao próprio governo (impostos e passivos trabalhistas).
Essas instituições enfrentam problemas com a defasagem de valores nas tabelas do SUS; atrasos de pagamentos e o recebimento por procedimentos realizados acontece entre 30 e 90 dias após o atendimento. Os hospitais só recebem pelo montante pactuado, o chamado teto financeiro, mas a produção real de atendimentos é muito maior, quer seja pelo crescimento ou em função da migração populacional. De suas receitas, 64% são provenientes do SUS, porém o atendimento, na maioria das entidades, concentra mais de 80% de sua capacidade no SUS. O resultado dessas distorções é que nos últimos cinco anos várias filantrópicas fecharam a suas portas e atualmente 30 Santas Casas encontram-se sob intervenção federal, estadual ou municipal. Ou seja, as Santas Casas convivem mensalmente com uma conta ilógica e somente mantêm suas portas abertas, superando todas essas dificuldades, pela misericordiosa missão de suprir a incompetência governamental e as carências de saúde da nossa população.
É preciso urgentemente rever a política do SUS em sua área hospitalar e fortalecer as filantrópicas. Algumas soluções para amenizar esse sofrimento seriam linhas de financiamentos específicos, revisão da tabela de procedimentos, maior investimento do governo no setor, já que a carga tributária brasileira é uma das mais altas do mundo: somos o quinto país entre os 118 que mais cobram impostos. No ano passado, o governo arrecadou R$ 732,8 bilhões em impostos, sendo 38,3% a parte do trabalhador.
No entanto, os investimentos em saúde continuam sendo pífios. De acordo com o Denasus (Departamento Nacional de Auditoria do SUS), o país estará investindo este ano em saúde aproximadamente R$ 159,2 bilhões. Destes, apenas 45,2%, ou R$ 72 bilhões, são investimentos das três esferas governamentais: União, Estados e Municípios, o equivalente a R$ 391,00 per capita, ou R$ 1,07 por dia. Para ter uma idéia de como essa quantia é insuficiente, dez anos atrás, alguns países da América Latina já investiam em dólares muito mais: Argentina (U$ 823), Uruguai (U$ 849), Bahamas (U$ 1.230).
Refém desses parcos investimentos, a maioria dessas entidades sobrevive hoje graças ao trabalho voluntário de abnegáveis profissionais e pessoas que se dedicam com fervor à solidariedade, buscando junto à sociedade os recursos que faltam ao setor. São notáveis os trabalhos desenvolvidos por associações filantrópicas e de voluntários em algumas entidades paulistas como o Hospital do Câncer, das Clínicas e Dante Pazzanese, entre outros. Se esse trabalho for ampliado a toda rede filantrópica – como pretende a humanista Rosangela Lurbe, que preside uma associação de voluntários no hospital Dante Pazzanese – com certeza estará se concretizando uma efetiva transformação no setor. Sua proposta é simples e inovadora: além de buscar recursos financeiros junto à sociedade, o programa voluntariado criaria, paralelamente, mecanismos para o desenvolvimento auto-sustentável, dinamizando assim o funcionamento do hospital, ou seja, o seu trabalho pretende fortalecer a sociedade dentro dos órgãos públicos, buscando mudanças na política pública de saúde.
Essas iniciativas particulares são compromissos dos que apostam no humanismo e acreditam na transformação e viabilização deste setor como grande aliado do SUS, porém, deverão ser complementadas com investimentos condizentes ao setor, para que continue desempenhando sua importante função. Por isso, é preciso zelar por essas instituições sérias, comprometidas com o aspecto social, ultimamente misericordioso, porque, no caso de um colapso no setor, mais uma vez quem pagará essa conta e acabará duramente penalizada será a população mais carente deste país.
* Foi presidente da Associação Médica Brasileira.
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