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Escrito por Luiz Roberto Barradas Barata*

Durante duas décadas, os brasileiros lutaram arduamente pelo direito ao voto direto. A campanha das «Diretas Já», de viva memória, marcou a virada democrática, consolidada quatro anos depois pela Constituição Federal de 1988 – que garantiu novamente aos cidadãos possibilidade de elegerem seus governantes. Naquele mesmo ano, 1988, o país obteve outra conquista sem precedentes, com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), também fruto de uma dura batalha para assegurar a todos, sem distinção, acesso gratuito a devida assistência médica e farmacêutica, antes reservados apenas aos trabalhadores que contribuíam para a Previdência Social.

Eleições diretas e universalidade no atendimento em saúde. Sem dúvida, dois feitos históricos, sinais inequívocos de democracia e progresso. Ao longo dos últimos 17 anos, tanto o sistema eleitoral quanto o SUS passaram por ajustes e reavaliações, em constante aperfeiçoamento, e não restam dúvidas de que muito ainda é preciso para que ambos cheguem ao seu ponto ideal. A eleição direta tem normas claras e definidas pela lei. Para exercer seu direito ao voto o eleitor deve comparecer a uma seção eleitoral específica, estar em dia com suas obrigações para com a Pátria e levar seu título de eleitor ou documento de identidade original. Se estiver em outra cidade fora de seu domicílio eleitoral, não é possível o exercício do voto, assim como não é permitido aos menores de 16 anos votar, dentre outras determinações legais. Isso tudo para garantir a todos, sem privilégios ou injustiças, o direito de votar.

Comparando-se por analogia, podemos dizer que o SUS, embora com normas definidas quanto à competência das esferas federal, estaduais e municipais, não estabelece, sob o ponto de vista legal, regras claras para a distribuição de medicamentos à população. A Constituição Federal prevê que todo brasileiro tem direito à assistência farmacêutica gratuita. No entanto, não há leis para estabelecer critérios ou parâmetros para o exercício desse direito. A assistência farmacêutica gratuita vem crescendo de forma acentuada no país. Para se ter uma idéia, o governo do Estado de São Paulo distribuiu, em 2004, seis milhões de medicamentos de alto custo, beneficiando cerca de 200 mil pacientes portadores de doenças raras e crônicas, num investimento de aproximadamente R$480 milhões, entre recursos estaduais e federais. O número de pacientes beneficiados e medicamentos entregues dobrou em relação a 2003.

Todos os medicamentos distribuídos pelo SUS são padronizados pelo Ministério da Saúde. Isso significa que existe todo um mapeamento das drogas disponíveis no mercado nacional e internacional, avaliação de eficácia e controle de farmacovigilância para que cada remédio seja aprovado e passe a integrar a lista de itens disponíveis na rede. Trata-se de um trabalho técnico, feito por especialistas do mais alto gabarito. No entanto, como a letra fria da Constituição se pronuncia apenas em relação ao direito à assistência farmacêutica gratuita, cresce em todo o país o número de ações judiciais contra Municípios, Estados e União, solicitando a entrega de medicamentos muitas vezes não padronizados, de eficácia duvidosa ou sem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Em muitos casos essas ações, propostas por advogados ou pela Defensoria Pública, são deferidas pelos juizes, que por vezes não entendem a complexa dinâmica da dispensação de remédios e acabam expedindo liminares ou mandados de segurança para assegurar a entrega de medicamentos sequer testados, o que se configura, indubitavelmente, em sério risco à saúde pública. Para se ter uma idéia, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo gastou, em 2004, R$48 milhões no cumprimento de ações judiciais para a entrega de remédios não padronizados. Somente no primeiro semestre deste ano foram mais R$86 milhões, o que significa, proporcionalmente, quatro vezes mais do que no ano passado inteiro. A continuar assim, é bem possível que o valor despendido pela Secretaria com ações judiciais supere, neste ano, os totais destinados à compra regular de medicamentos padronizados para distribuição na rede pública.

Embora o SUS possua uma vasta relação de medicamentos padronizados, é possível solicitar à Secretaria, em situações especiais, remédios não padronizados pelo Ministério da Saúde. Trata-se de um processo administrativo, analisado caso a caso, e aprovado quando se comprova real necessidade do paciente. Ocorre que o atendimento a esses pedidos por vezes é prejudicado por um mandado de segurança que determina a entrega do mesmo medicamento, em prazo de 48 horas, a outra pessoa que dispunha de recursos para a contratação de um advogado. Ou seja, para cumprir uma determinação judicial, a Secretaria acaba passando o beneficiário da ação na frente e entregando o remédio antes destinado a um paciente que realmente dele necessitava a outra pessoa com mais recursos financeiros para contratar um advogado. Situação injusta, para dizer o mínimo.

Soma-se a isso o fato de que a cada dia crescem as suspeitas de solicitação de medicamentos feita por médicos a serviço da indústria farmacêutica, interessada em colocar no mercado seus novos produtos. O crescimento do número de ações compromete os já parcos recursos do SUS, retirando verbas de outros programas de saúde e prejudicando, inclusive, a própria entrega regular de remédios na rede pública. Urge, portanto, a regulamentação da assistência farmacêutica por meio de lei que estabeleça parâmetros claros e técnicos para garantir o direito de todos e permitir a correta e justa distribuição de medicamentos à população.

* É médico sanitarista e secretário de Estado da Saúde de São Paulo.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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