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Escrito por  Cícero de Andrade Urban*

A apresentação de um dos clássicos do teatro e da televisão nacionais, Paulo Autran, no Hospital de Clínicas, estimulou a reflexão de alguns pontos importantes na profissão médica, por vezes esquecidos: muitos médicos na história desviaram-se da medicina e tornaram-se artistas, mas são poucos os médicos que têm exercido sua profissão hoje como arte.

Para Platão, existem três coisas neste mundo que realmente valem a pena: a justiça, a beleza e a verdade. Nós, médicos, somos grandes “buscadores” da verdade. Empregamos o tão glorioso método científico de Galileu na sua forma mais pura. Observamos os nossos pacientes, experimentamos novas tecnologias e tentamos colocar nossos postulados em conformidade com a matemática (o que conhecemos como estatística ou bioestatística na linguagem médica moderna). Todo raciocínio médico é rigoroso e sistemático, estuda as partes para tentar compreender o todo. Mas o todo é muito complexo. É mais fácil saber quase tudo de quase nada. Assim surgiram as famosas especialidades, e a figura do médico generalista é hoje uma raridade.

Falar em justiça na área de saúde é algo complexo, sobretudo no Brasil. Não conheço um profissional, seja qual for a sua área de atuação, que esteja contente com a sua profissão sem que possa exercê-la de maneira plena. As limitações e dificuldades do sistema público e também, porque não dizer, do sistema privado, traduzem-se tantas vezes em descontentamento e frustração profissional. O médico, em maior ou menor grau, preocupa-se com a justiça, em dar aos pacientes os melhores tratamentos, o que existe de mais atual em sua especialidade. Faz parte dos preceitos hipocráticos dar a cada um o que é devido, tal qual existe na filosofia do direito. Preocupa-me mais, todavia, o último ponto: a beleza. Não o belo no sentido puramente estético, externo e superficial. Mas o belo que encontramos nas artes e humanidades, que deixaram de fazer parte da formação médica há muito tempo. A arte, a filosofia e a música são instrumentos que nos aproximam da divindade. O clínico é como o poeta que busca na palavra um sentido especial. A palavra é o seu instrumento sagrado, o caminho para o diagnóstico e para o alívio do sofrimento. O cirurgião, por outro lado, é um grande artesão, que busca nas suas manobras imitar a natureza. Natureza que tantas vezes nos traz, ao mesmo tempo, sentimentos de admiração pela sua indescritível beleza e temor pelos nossos limites técnicos ao trabalharmos com tão nobres e complexas estruturas.

Fico também preocupado com o radiologista ou com o patologista que não consegue abstrair o ser humano que está por trás das suas lastras e lâminas. Quando vemos o quadro de Picasso A mulher chorando com um lenço (1937), em um primeiro momento temos a impressão de que se trata de apenas uma mulher retratada em duas perspectivas. Mas quando descobrimos que se trata da representação de todas as mulheres espanholas, que têm ao mesmo tempo um olhar para o futuro, mas que ao olhar para trás não se esquecem de suas tradições, descobrimos nova forma de admirar o mesmo quadro.

O médico e o artista se confundem no imaginário popular. Um traz no palco a expressão da alegria de viver, o outro restabelece, com a sua profissão, o viver e, se possível, com alegria e qualidade de vida. Ambos, contudo, vivem também as tragédias cotidianas que fazem parte da vida de todos. Assim, não consigo separar o médico da arte, porque ele precisa do belo nas suas mais diversas manifestações para que a técnica não enrijeça o seu espírito. No campo da Medicina, assim como no da Filosofia e da Arte, procuramos responder às mesmas perguntas fundamentais que atormentam o espírito humano desde tempos imemorais: 1) O que eu posso saber? 2) O que eu devo fazer? 3) O que eu posso esperar? 4) O que é o homem?

A primeira pergunta se refere à metafísica, a segunda à moral e a terceira à teologia. Para Kant, contudo, as três poderiam ser exprimidas na última na antropologia. E a medicina não é nada mais do que o estudo do “antropo” aplicado ao fenômeno saúde-doença. Talvez seja ela o mais nobre campo da antropologia, mesmo que nós médicos não saibamos.

Assim, como diz o evangelho de Lucas – médico, cura-te a ti mesmo – , dentro desta perspectiva pode significar: preenche o teu espírito com o belo, com o bom e com o verdadeiro, para que a tua arte imortalize o artista. Obrigado, Paulo Autran, por nos recordar que medicina também é arte!

* É médico oncologista e mastologista do Hospital Nossa Senhora das Graças, Curitiba

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