Escrito por Roberto de Albuquerque Cavalcanti *Maria Alice Fernandes Gayo **


O médico atual, formado dentro do paradigma flexneriano hegemônico, essencialmente mecanicista/dualista, confronta-se com a fragilidade desse modelo ao ser vítima dos efeitos psíquicos nocivos do trabalho médico sobre sua saúde e sua própria vida.

Segundo Frasquilho (2005), a profissão médica situa-se no topo da lista de profissões estressantes, em nível de igualdade com policiais, operadores de tráfego aéreo, investidores da bolsa de valores e professores. Essa elevada carga de estresse (distresse) produz danos à saúde física e mental desses profissionais e suas famílias: os médicos adoecem mais que os profissionais de status equivalente, se divorciam mais que a população geral e também se suicidam mais frequentemente.

“…em toda parte do mundo a taxa de suicídio na população médica é superior à da população geral.” (MELEIROS, 1998).

Entretanto, apesar de submetidos a tais níveis de estressores, os médicos são quase unânimes em negar que apresentam qualquer sintoma ou doença provocada pela profissão. Numa postura de onipotência, descuidam da própria saúde e de suas famílias, não fazem check-up’s periódicos, fazem automedicação, subestimam o diagnóstico de seus problemas emitidos por outros colegas e apresentam baixa adesão aos tratamentos prescritos. Numa postura dualista, menosprezam os problemas psíquicos, deixando de valorizá-los em seus pacientes, familiares e em si mesmos. O agnosticismo que praticam como homens de ciência leva a maioria deles a se afastar da religião e dar menos importância a seus dogmas e sacramentos.

Apesar de perspectivas tão sombrias e da baixa remuneração hoje percebida pelos médicos, a demanda pelos Cursos de Medicina é elevada e inúmeros novos cursos surgem anualmente em todo o país. Esta atração pela medicina é em parte explicada por Simon, (1971) através do conceito de “Complexo Tanatológico”. Segundo ele, todo ser humano teme a morte e anseia pela imortalidade. Inconscientemente idealiza um “Ser Tanatológico”, alguém dotado de poderes mágicos capazes de vencer a morte. Dentro das sociedades ocidentais, o médico personifica essa figura mágica. Inúmeros estudantes escolhem a profissão médica movidos por essa busca do poder, pela onipotência, onipresença e onisciência do ser tanatológico. Para obter esse poder, enfrentam todos os obstáculos representados por longos anos de estudo (graduação, residência médica, mestrado, doutorado), noites insones em estudos e plantões e renunciam a muitos dos lazeres comuns aos demais estudantes da mesma faixa etária. Movidos por exemplos transgeracionais de sucesso, assimilam a inevitabilidade do estoicismo, de levar uma vida de trabalho e sacrifício. Aceitam adiar, para um futuro que teima em se afastar como a linha do horizonte, os planos pessoais essenciais à realização de qualquer ser humano; chegar ao mercado de trabalho após os 30 anos, postergar o casamento, a paternidade/maternidade, tudo em nome do objetivo maior de conquistar o poder.

O choque de realidade decorrente do exercício da medicina vem, entretanto, frustrar as expectativas de poderes mágicos, de vitória sobre a morte, de onipotência, onipresença e onisciência. A estas, somam-se a frustração dos baixos salários, a exaustão provocada pelos múltiplos empregos, a falta de reconhecimento pelo esforço e dedicação devotados ao trabalho. O acúmulo de frustrações, adicionado aos estressores de fundo (pequenos e constantes aborrecimentos diários) torna os médicos vítimas freqüentes de infarto do miocárido e angina pectoris. A incidência de doença mental (depressão e ansiedade graves) atinge 23 a 47% dos médicos ativos, níveis pelo menos duas vezes superiores aos profissionais de status semelhante (engenheiros e advogados). Entre 12 a 14% deles são drogadictos, (levados pelo acesso fácil a substâncias psicoativas), muitas vezes em associação ao consumo de bebidas alcoólicas. A vida familiar é comprometida pelas longas horas de ausência do lar, em múltiplas jornadas de trabalho.

“O distresse médico alastra-se para a vida familiar. Os médicos têm freqüente conflitualidade familiar e divorciam-se 20 vezes mais que a população geral. … A doença psiquiátrica em médicos tem uma prevalência superior à população geral. Já em 1958, se evidenciou que a taxa de suicídio era mais elevada nos médicos do que na população geral. … O perfil de maior risco para o suicídio inclui homem ou mulher, mais de 45 anos (mulheres) e mais de 50 anos (homens), raça branca, divorciado, separado ou solteiro, abusador de álcool ou outros tóxicos, dependente do trabalho – trabalhólico –, jogador, com comportamentos de desafio ao perigo, com sintomas de ansiedade ou depressão, sintomas físicos de dor crônica ou com doença crônica debilitante, com mudanças (ou ameaças de mudança) ao status – de reconhecimento, de autonomia, de segurança financeira – e perdas afetivas recentes.” (FRASQUILHO, 2005. p.434).

As situações finais de distresse configuram um quadro clínico denominado de burnout (“burn” = queimar e “out” = extinto ou apagado: significa totalmente queimado ou reduzido a cinzas), descrito em pessoas envolvidas profissionalmente no atendimento de outras pessoas, como os médicos e professores. O burnout é caracterizado pelo desânimo, alheamento, desesperança, irritabilidade, criticismo fácil, conflito, negativismo, sensação de inadequação, incidência de erros e menor eficiência no trabalho. Em condições extremas estabelece-se o corte:

“Finalmente há o corte por exaustão que se caracteriza pelo evitamento de tudo e todos os que se relacionam com a profissão, pelo não querer saber, ou tanto dá, pela sensação de traição, de que se errou no investimento feito, de que nada mais há a fazer com uma grave erosão de valores, da dignidade e do autoconceito. Instala-se improdutividade franca, o absentismo e caos com potencial retirada do local de trabalho ou mesmo da profissão. A depressão grave é comum tal como o potencial de suicídio”. (FRASQUILHO, 2005. p.437).

O burnout não ocorre somente em especialidades claramente estressantes como, por exemplo, a emergência dos hospitais de trauma ou as Unidades de Terapia Intensiva. Os clínicos gerais, submetidos durante anos, nos ambulatórios, a trabalho repetitivo, número exagerado de pacientes, baixos salários, reclamações freqüentes dos usuários, agressões verbais ou mesmo físicas, são as principais vítimas. Entre os urgentistas, 25,2% encontram-se em fase final de burnout e 23,1% pretendem deixar esse tipo de atividade nos próximos 5 anos.

Abordar esse assunto não visa intranqüilizar os médicos nem desestimular estudantes, mas advertir os mais jovens sobre o mundo particular onde vivem os médicos, no qual vão ingressar absolutamente desinformados e alimentando expectativas idealizadas segundo modelos de sucesso profissional (muitas vezes conseguido à custa de sacrifícios inaceitáveis da vida pessoal) dificilmente atingíveis nas atuais circunstâncias socio-econômicas onde a medicina encontra-se inserida. A sucessão e acúmulo de frustrações produz o distresse e, mais adiante, o burnout, desestruturador e mortal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FRASQUILHO, M.A. Medicina, Médicos e Pessoas. Acta Méd Port 18 433-444, 2005. SIMON R. “O complexo tanatolítico” justificando medidas da psicologia preventiva para estudantes de medicina. Bol Psiq 4(4): 113-5; 1971.


* É professor adjunto do Curso de Medicina do CCS – UFPB)

**  É acadêmica do Curso de Psicologia do CCHLA – UFPB)


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